Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
Somos tratados como inimigos do brasileiro
que ele pensa que é, cidadão de quartel
O presidente Alberto Fernández, no dia 9 de
junho, reunia-se com o primeiro-ministro espanhol, Pedro Sánchez, que lhe
levara apoio na renegociação da dívida milionária da Argentina com o FMI e o
Clube de Paris. Por meio de uma gracinha antidiplomática, quis bajular o
chanceler espanhol: “Os mexicanos vieram dos índios, os brasileiros vieram da
selva, mas nós, os argentinos, viemos dos barcos. E eram barcos que vinham da
Europa”.
A desinformação de Fernández contraria a
reputação argentina de país culto, que por muito tempo teve alto padrão de
educação, interrompido pela ditadura militar. Um país que tem cinco prêmios
Nobel.
Já o México é, provavelmente, o país mais
culto da América Latina. Foram justamente os espanhóis que destruíram
civilizações na extensa região de que o México era parte. Seus intelectuais são
em boa parte mestiços.
Qualquer criança sabe que nós brasileiros
não viemos só da selva. Quem dela veio, foi lá buscado e caçado. Somos
originários da miscigenação de portugueses e espanhóis com indígenas e
africanos. O Brasil de então esteve sob domínio da Espanha de 1580 a 1640.
Bolsonaro é até mais abundante nas gracinhas presidenciais desenxabidas. Só que ele elege como objeto do seu deboche, da sua política de pouco caso, o povo brasileiro. Para ele, nós brasileiros somos estrangeiros de anedota. Somos tratados como inimigos do brasileiro que ele pensa que é, cidadão de quartel.
Ele se esbalda nas gozações da cultura de botequim
que caracteriza muitas de suas manifestações demagógicas, a do público que ri
com seus ditos ofensivos. Faz alusões indevidas aos brasileiros que não pensam
como ele nem se rebaixam a seu nível de compreensão do que é o poder, a
política, a sociedade civil, a democracia.
Em 17 de maio, dirigiu-se a seus
bajuladores costumeiros, na entrada do Palácio do Planalto, e citou os que
estão guardando as recomendações científicas e médicas de proteção sanitária em
face da pandemia: “Tem alguns idiotas que até hoje ficam em casa”. Orgulho-me
de ser um desses idiotas. Tenho discernimento.
No final de 2020, em visita ao Maranhão,
alguém lhe ofereceu, para que provasse, o famoso e antigo refrigerante regional
Cola Guaraná Jesus, que tem a coloração cor-de-rosa. Com gargalhadas,
características das conversações incultas dos que se afirmam minimizando os
outros, gritou para todos: “Virei boiola, igual maranhense”. Uma afirmação
perturbadora porque expressa desconhecimento do que é a bebida que estava
tomando.
O Guaraná Jesus é muito apreciado não só no
Maranhão, como também no Piauí e no Tocantins. É o refrigerante do Meio-Norte.
Foi criado pelo farmacêutico maranhense Jesus Norberto Gomes, em 1927.
Ele adaptou receita antiga de mães e avós
que faziam chá frio, de canela e cravo bem doce, para agradar as crianças.
Costume difundido no Brasil inteiro. Isso foi antes da invenção dos
refrigerantes gaseificados. Acrescentou o medicinal guaraná da Amazônia na
composição da bebida. Gastou um bom tempo até chegar à fórmula final do
produto.
No Sudeste, o médico, filósofo, cientista
fluminense e cafeicultor Luís Pereira Barreto, radicado em São Paulo e um dos
fundadores da Faculdade de Medicina, conseguiu fazer o extrato da fruta, em
1909, que daria origem ao Guaraná Champanhe, que a Antárctica industrializaria.
Quando a Coca-Cola tentou entrar no mercado
maranhense, encontrou resistências. A população preferia o histórico
refrigerante do farmacêutico Jesus. O refrigerante americano teve que se
render: comprou a fábrica do concorrente, a fórmula e a marca Jesus.
Há, no Maranhão, uma espécie de orgulho
patriótico por esse feito do refrigerante local. A receita do modesto Jesus
bateu, na concorrência, uma das maiores potências do mundo na produção e
comercialização de um refrigerante. Que também nasceu como remédio, vendido em
farmácias, beneficiado pelas proibições da Lei Seca. A Coca, comprada em
farmácia, entrava no imaginário puritano dos americanos como estimulante não
pecaminoso. É o que expôs o antropólogo americano Sidney Mintz em conferência
que dele ouvi na Universidade da Flórida, em 1983, sobre “A pausa que
refresca”, famoso slogan da Coca-Cola.
A Coca tentou interromper a produção do
Guaraná nativo do Maranhão para ocupar-lhe o lugar. Não deu certo. Teve que
assumir a produção do produto concorrente.
A Cola Guaraná Jesus foi um dos documentos
do imaginário messiânico brasileiro exibidos na exposição do Quinto Centenário
da Descoberta do Brasil, no Ibirapuera.
Eu estava em São Luís quando um belíssimo
pôster, com uma foto da garrafa da Cola Jesus, foi colocado pela Coca nos bares
e casas comerciais com este anúncio genial: “Jesus voltou!”.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Simon Bolivar Professor (Cambridge, 1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de “Moleque de Fábrica” (Ateliê).
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