- Folha de S. Paulo
História é pontilhada por interferências de
militares na política
Os militares
do Exército pulverizaram o que houvesse de positivo no seu conceito
público. Uns, por conduta degenerada em termos éticos, cívicos
e profissionais. Outros, por omissão solidária, ou comodismo carreirista, ou
imaginada correção. Estes três segmentos apresentam-se sob a obediência ao
princípio militar de “hierarquia e disciplina”.
Mais um ataque desmoralizador ao Estatuto
das Forças Armadas e ao Regulamento Disciplinar do Exército (o RDE), bases das
funções militares constitucionais, faz irromper uma torrente de alarmes.
“Escancaradas as porteiras para a anarquia militar, o Exército põe a disciplina
em risco, incentivo à indisciplina e à bagunça”, ninguém faltou.
A irrupção da valentia é justificada. Seu
moinho de vento é, no entanto, uma lenda velha, consolidada na pobreza da
instrução e da reflexão em todas as classes sociais. E, entre militares, pelo
mesmo motivo, lenda acreditada como verdade inquestionável. “Hierarquia e
disciplina.” Desde a sua proclamação por um golpe de Estado, a República tem a
história pontilhada por interferências de militares do Exército na política e
nas instituições civis. É um percurso traçado pela luta entre o regime
constitucional e os ataques militares para devastá-lo. Com vários êxitos e sempre
contra o caminhar civilizatório.
Os quase 132 anos de República ainda não bastaram para trazer o Exército à maturidade. Não tem pensamento militar próprio, é caudatário embevecido do colonialismo militar americano —o que esvazia a concepção e nega o sentimento de soberania— e vive mais de ideologia política que de qualquer das especificidades apropriadas.
Na América do Sul desafeita às guerras, os
Exércitos não são temidos pelos congêneres, mas por seus respectivos povos.
Todos esses já os encontraram do outro lado de justas reivindicações materiais
e legítimas aspirações políticas. No Brasil isso continua sendo verdadeiro
também no jogo político do regime de Constituição democrática.
É inimaginável, nos Exércitos com maturidade profissional, que seu comandante difundisse mensagem à Suprema Corte para obstruir a candidatura mais apoiada à Presidência do país. E, para completar o serviço ilegal e imoral, chamasse outro candidato ao seu gabinete de comandante do Exército para apoiá-lo, em cena logo tornada pública. Bolsonaro não erra quando diz que deve sua eleição ao general Villas Bôas. Mas disciplina, conduta legal, moral —onde?
Em uma só eleição, a mais recente,
militares do Exército fizeram e desfizeram presidências. Contudo, sem inovar,
desde a Proclamação da República. Apenas com o exercício continuado da falta de
noção hierárquica na democracia institucional e de disciplina na função
militar.
O que faz diferença entre os episódios é a
inteligência ou o cinismo. Juscelino,
por exemplo, não emporcalhou as Forças Armadas, nem seu ministro e
comandantes o fizeram, para que militares amotinados contra ele escapassem à
pena de prisão. Acalmado o ambiente, fez o gesto político e limpo de
anistiá-los em nome da pacificação. Bolsonaro, porém, é Bolsonaro e, para
piorar, com a sutileza da formação na infantaria do Exército.
Sim, o general do morticínio participou de
comício do capitão do morticínio, transgredindo norma para militares da
ativa, mas foi
isentado pelo comando do Exército de qualquer das punições previstas.
E premiado com a nomeação cômica para encarregado de estudos
estratégicos da Presidência, logo quem. Hierarquia, disciplina,
respeito à legislação, à Constituição —onde?
Nem ao menos novidade. Um coronel negro,
Job Lorena de Santana, foi premiado com a promoção a general, que não teria,
por falsificar a investigação e seu resultado no caso Riocentro, o atentado de
militares do Exército contra centenas de espectadores de um show de 1º de Maio.
O incompetente criminoso a liderar o atentado frustrado, então capitão Wilson
Machado, só perdeu um pedaço do abdome e seu carro esporte Puma, que roubara em
São Paulo. Ganhou promoções até coronel. E não chegou a general porque por esse
oficial, exemplar em hierarquia e disciplina, não quis fazer a Escola de
Comando e Estado-Maior.
Episódios complementares dos aí citados
criaram no Brasil a normalidade anormal.
Os atuais a continuam. Não estão ferindo,
só agora, a hierarquia e a disciplina que viraram lenda sem jamais terem sido
realidade.
Foi assim que os golpes, variados entre os perversos como o de 64 e os ardilosos como o do general Villas Bôas, alternaram-se com motins, tentativas e agitações, e levaram a outros golpes. Como estamos vendo.
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