EDITORIAIS
Impostura em rede nacional
O Estado de S. Paulo
O presidente Jair Bolsonaro fez um pronunciamento em rede nacional na quarta-feira para prestar contas das ações de seu governo em meio à pandemia de covid-19. Na prática, contudo, o discurso serviu como mais uma das peças de propaganda de sua campanha à reeleição, iniciada assim que tomou posse. Nessa condição, Bolsonaro fez o que os maus políticos fazem nos palanques: distorceu fatos e inventou conquistas e qualidades inexistentes em seu governo.
A impostura começou logo na primeira frase:
“Sinto profundamente cada vida perdida em nosso país”. Depois de passar mais de
um ano desdenhando da morte em massa de seus compatriotas, o presidente
resolveu “sentir profundamente” – mas, ocupado demais com passeios de moto,
comícios golpistas e banhos de mar, ainda não encontrou tempo para visitar os
hospitais, os familiares de doentes e mortos e os médicos que estão vivendo o
pesadelo da pandemia.
Em seguida, Bolsonaro festejou “a marca de
100 milhões de doses de vacinas distribuídas a Estados e municípios”. Trata-se
de escárnio: conforme constatou a CPI da Pandemia, o Brasil poderia ter 150
milhões de doses até maio passado, se o governo não tivesse sabotado a compra
de vacinas quando foram oferecidas.
Segundo o presidente, “o Brasil é o quarto
país do mundo que mais vacina no planeta”. No entanto, levando-se em conta o
número de vacinados em relação à população, o Brasil é apenas o 79.º no
ranking. Somente 10% receberam as duas doses da vacina – e, nesse ritmo, é
difícil acreditar que “neste ano todos os brasileiros que assim o desejarem
serão vacinados”, como anunciou Bolsonaro. Soa, portanto, como promessa
demagógica de campanha.
A ênfase de Bolsonaro na vacinação poderia
ser uma boa notícia se fosse autêntica, mas sabe-se que é só cálculo político.
A maioria dos brasileiros quer tomar a vacina, conforme atestam as pesquisas, e
a escassez dos imunizantes tem motivado o mau humor dos cidadãos com o
presidente. Pressionado por seus súditos do Centrão, Bolsonaro parece ter sido
convencido de que boicotar as vacinas não dá votos.
O presidente foi à TV para se passar por campeão da vacinação também como resposta às revelações chocantes da CPI da Pandemia. Durante a semana não faltaram depoimentos demonstrando como Bolsonaro fez de seu governo uma cidadela do negacionismo científico – um dos fatores cruciais para que estejamos perto de atingir 500 mil mortos pela pandemia.
Num dia, falou a oncologista Nise
Yamaguchi, referência bolsonarista na defesa da cloroquina contra a covid-19.
Incapaz de provar a seriedade dos “estudos” que citou para propagandear o
elixir, a doutora, no entanto, demonstrou ter as qualidades exigidas por
Bolsonaro: sustentou a mistificação mesmo diante de evidências em contrário.
No dia seguinte, falou a infectologista
Luana Araújo, que havia sido convidada para chefiar a secretaria do Ministério
da Saúde que centraliza o combate à pandemia, mas acabou dispensada depois de
apenas dez dias de trabalho. O depoimento deixou claro por que a doutora foi
preterida: é defensora da ciência contra o curandeirismo, algo inaceitável para
Bolsonaro.
Nessa toada obscurantista, o “estadista” de
fancaria que Bolsonaro incorporou na TV aproveitou também para faturar a alta
do PIB e para dizer que “estamos avançando no difícil processo de
privatizações” – uma falsidade que pode ser atestada por qualquer um dos vários
assessores do Ministério da Economia que pediram demissão por frustração com o
atraso nas privatizações.
Bolsonaro não citou nenhuma vez a palavra
“cloroquina”, mas também não mencionou a palavra “reformas”. Segundo reportagem
do Estado, o presidente já disse ao ministro Paulo Guedes que não quer
mais a reforma administrativa. Informado por Guedes, o presidente do Senado,
Rodrigo Pacheco, questionou em público: “Há o compromisso do Executivo com a
reforma administrativa?”.
É óbvio que não há, porque nunca houve.
Para Bolsonaro, vacinas, reformas e privatizações são palavras vazias, que ele
usa em seu discurso eleitoreiro para enganar otários.
Congresso distante do bolsonarismo
O Estado de S. Paulo
Depois de rejeitar as Medidas Provisórias (MPs) 892/2019 e 896/2019, o Congresso opôs-se mais uma vez à tentativa de Jair Bolsonaro de fustigar a imprensa alterando as regras de publicação de editais em jornais. No dia 1.º de junho, Câmara e Senado derrubaram cinco vetos do presidente Jair Bolsonaro à nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei 14.133/2021), restabelecendo, entre outros pontos, a exigência de publicação dos extratos de editais em jornais de grande circulação.
Além de fortalecer a transparência dos atos
licitatórios, a derrubada dos vetos presidenciais sobre a publicidade dos
editais mostra que o Senado e a Câmara estão muito distantes da agenda
bolsonarista ideológica que, entre outros pontos, tenta continuamente impor
obstáculos às liberdades de expressão e de imprensa.
Em agosto de 2019, o presidente Jair
Bolsonaro editou a MP 892/2019, excluindo a exigência de publicação das
demonstrações financeiras em jornais de grande circulação. O objetivo da medida
foi explicitado pelo próprio presidente. “Ontem, retribuí parte daquilo (com)
que grande parte da mídia me atacou”, disse Jair Bolsonaro na ocasião. Não se
deu conta, no entanto, que sua “retribuição à grande imprensa” afetaria
principalmente jornais regionais, que têm na publicação dos balanços
empresariais uma de suas principais fontes de receita.
Um mês depois da MP 892/2019, o presidente
Jair Bolsonaro voltou a editar nova medida para atacar financeiramente os
jornais. Alterando a Lei de Licitações, a Lei do Pregão, a Lei das Parcerias
Público-Privadas e a Lei do Regime Diferenciado de Contratação, a MP 896/2019
excluía a exigência de publicação em jornal de grande circulação de atos
licitatórios, substituindo-a pela publicação em site de internet indicado pelo
poder público respectivo.
A MP 896/2019 era uma manifestação de puro
descaso com a segurança jurídica e a transparência dos atos. Com apenas sete
artigos, a MP 896/2019 pretendia modificar inteiramente a publicidade do
sistema de contratação pública. Em outubro de 2019, o ministro Gilmar Mendes,
do Supremo Tribunal Federal (STF), suspendeu a eficácia da MP 896/2019 até sua
análise pelo Congresso.
Não pactuando com o objetivo do Palácio do
Planalto de causar dano aos jornais por meio da constrição abrupta de suas
receitas, o Legislativo deixou caducar as MPs 892/2019 e 896/2019, que perderam
sua eficácia. Vale lembrar que a Lei 13.818/2019, aprovada naquele mesmo ano,
já estabelecia uma atualização das regras relativas à publicação de balanços
empresariais, com a previsão de um período de transição.
Além disso, na votação da nova Lei de
Licitações e Contratos Administrativos, em março deste ano, o Congresso
reafirmou a necessidade de uma ampla publicidade dos atos licitatórios,
exigindo a divulgação dos extratos de editais no respectivo Diário
Oficial (federal, estadual ou municipal) e em jornal diário de grande
circulação. Também fixou que, até dezembro de 2023, os municípios deveriam
divulgar, na imprensa escrita, suas contratações.
O presidente Jair Bolsonaro optou, no entanto,
por ignorar essa expressa e reiterada vontade do Congresso de manter a
publicação dos atos licitatórios em jornais de grande circulação. Ao sancionar
em abril a Lei 14.133/2021, vetou, entre outros, os dois dispositivos relativos
ao tema.
Agora, de forma ainda mais contundente – a
derrubada de veto presidencial exige maioria absoluta dos deputados e senadores
–, o Congresso restabeleceu os dispositivos relativos à publicação dos atos
licitatórios e as contratações municipais em jornais.
É triste observar essa constante tentativa
do presidente Jair Bolsonaro de causar prejuízo financeiro à imprensa. Trata-se
de grave afronta às liberdades fundamentais e ao compromisso de respeitar a
Constituição. Ao mesmo tempo, é alvissareiro observar que o Congresso, apesar
de todos os seus defeitos e de todas as negociações do Palácio do Planalto com
o Centrão, sabe manter-se distante do bolsonarismo e defender as liberdades
fundamentais.
O ensino público e os deveres da União
O Estado de S. Paulo
O Congresso não apenas faz leis. O trabalho legislativo pode também ser decisivo para que as leis já aprovadas sejam cumpridas. Foi o que se viu recentemente com o Projeto de Lei (PL) 3.477/2020, que dispõe sobre acesso à internet na educação básica pública. Ao derrubar o veto integral do presidente Jair Bolsonaro ao projeto de lei, o Congresso fez cumprir a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB, Lei 9.394/1996).
Aprovado pelo Congresso em fevereiro deste
ano, o PL 3.477/2020 dispõe sobre a assistência da União aos Estados para a
garantia de acesso à internet, com fins educacionais, aos alunos e aos
professores da educação básica pública. Em concreto, o texto determina a
destinação de R$ 3,5 bilhões aos Estados, a serem aplicados em “ações para a
garantia do acesso à internet, com fins educacionais, aos alunos e aos
professores da rede pública de ensino dos Estados, do Distrito Federal e dos
municípios, em virtude da calamidade pública decorrente da covid-19”.
Seja por descaso com a educação pública,
seja por negacionismo em relação à pandemia, o presidente Jair Bolsonaro vetou
integralmente o PL 3.477/2020. Na mensagem de veto, o Executivo federal alegou
que o projeto de lei destinando R$ 3,5 bilhões para ações de acesso à internet
na rede pública de ensino não apresentou “estimativa do respectivo impacto
orçamentário e financeiro”.
Na apreciação do veto pelo Congresso,
lembrou-se que o PL 3.477/2020 previu as fontes de recursos para o programa: o
Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (Fust) e o saldo
correspondente a metas não cumpridas dos planos gerais de universalização do
serviço telefônico fixo. Na Câmara, foram 419 votos pela derrubada do veto
contra 14 pela manutenção. No Senado, foram 69 votos favoráveis à derrubada e nenhum
contrário.
Com o PL 3.477/2020, o Congresso não apenas
previu a destinação de receitas para um tema fundamental nos tempos atuais,
muito especialmente na pandemia. Para a tarefa educativa, é essencial que
alunos e professores disponham de acesso à internet. Ao derrubar o veto, o
Legislativo assegurou a aplicação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional.
Ao tratar da organização da educação
nacional, a Lei 9.394/1996 determina que “a União, os Estados, o Distrito
Federal e os Municípios organizarão, em regime de colaboração, os respectivos
sistemas de ensino”. Ou seja, o regime de colaboração que deve haver entre as
esferas da Federação não depende da disposição de cada ente, como se fosse
possível não colaborar.
A colaboração é uma exigência da própria
lei. Não cabe, portanto, ao Executivo federal negar a gravidade da pandemia,
ignorando, por exemplo, que a atual situação sanitária traz novos desafios ao
ensino, especialmente à rede pública – o que demanda políticas e investimentos
adequados.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional também dispõe que uma das atribuições da União é “prestar assistência
técnica e financeira aos Estados, ao Distrito Federal e aos municípios para o
desenvolvimento de seus sistemas de ensino e o atendimento prioritário à
escolaridade obrigatória, exercendo sua função redistributiva e supletiva”.
Tendo em vista esse dever legal, percebe-se
que o Congresso atuou corretamente ao destinar R$ 3,5 bilhões para ações de
acesso à internet na rede pública de ensino. A União tem o dever de prestar
assistência técnica e financeira aos entes federativos. Se o governo federal
não cumpre adequadamente “sua função redistributiva e supletiva” – como diz a
lei –, é muito oportuno que o Congresso atue. Sem acesso à internet, a educação
de crianças e adolescentes numa pandemia é uma ficção.
A história do PL 3.477/2020 mostra duas
coisas. É mais um caso, dentre tantos, a confirmar a atuação omissa do governo
de Jair Bolsonaro. E é mais um exemplo de que o Congresso nem sempre faz jus à
sua fama negativa. Muitas vezes, é ele quem cuida do interesse público,
proporcionando soluções concretas para os problemas nacionais.
É inexplicável por que Salles ainda continua no cargo
O Globo
O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, deu nesta semana uma pista para sua inexplicável permanência no cargo, apesar das acusações a que responde em dois inquéritos relacionados ao desmatamento da Amazônia. Em esclarecimentos à Procuradoria-Geral da República (PGR), afirmou que fez reunião com madeireiros após solicitação “feita pessoalmente” pelo ministro-chefe da Casa Civil, Luiz Eduardo Ramos. Os dois negam irregularidades, mas Salles basicamente lançou sobre o Palácio do Planalto a suspeita de envolvimento nas ações que resultaram em favorecimento de madeireiras ilegais.
A política adotada por Salles à frente do
ministério é responsável pelo aumento da devastação da Amazônia. Há uma
quantidade robusta de evidências para declará-lo culpado por isso, como
demonstrou reportagem ontem no GLOBO. Nos dois primeiros anos do governo
Bolsonaro, o desmatamento cresceu 46% em relação ao período entre 2017 e 2018.
Passou de 21 mil km2, maior número da década para um biênio. Se tivesse
ocorrido no Sudeste, a área destruída ocuparia uma região grande o bastante
para unir os municípios do Rio e São Paulo. Enquanto a floresta era dizimada,
foi reduzida a quantidade de agentes aptos a fazer o trabalho de fiscalização
nos organismos responsáveis, Ibama e ICMBio. A queda foi de 15% em ambos.
No norte de Rondônia, a Floresta Nacional
do Jacundá, uma das unidades de conservação mais bem preservadas da região, foi
invadida por grileiros que usam camisas com a imagem de Jair Bolsonaro. A
confiança na impunidade é tanta que o grupo tem até um canal no YouTube, com o
nome de “Jacundá - A Terra Prometida”.
Salles é investigado em dois inquéritos por
suspeita de ter beneficiado empresas do setor madeireiro. Um deles é conduzido
pela Polícia Federal (PF) no âmbito da Operação Akuanduba. Uma das linhas de
investigação tenta descobrir se o ministro e sua equipe receberam vantagens. Um
relatório do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) aponta que
um escritório de advocacia ligado a Salles realizou transações atípicas que
somaram R$ 1,7 milhão entre 2019 e 2020.
O outro inquérito, conduzido pela PGR, foi
aberto com autorização de Cármen Lúcia, ministra do Supremo Tribunal Federal
(STF), na quarta-feira. O caso surgiu em abril, depois que o delegado Alexandre
Saraiva, então superintendente da PF no Amazonas, enviou notícia-crime contra
Salles acusando-o de atuar em defesa de madeireiros do Pará contra a Operação
Handroanthus, responsável pela maior apreensão de madeira da história do país.
Salles se diz inocente e, na mensagem enviada à PGR, afirmou ter agido a pedido
de Ramos.
É papel dos órgãos de controle investigar e
dar amplo direito de defesa aos acusados. Mas é evidente que, para evitar
suspeitas de eventuais barreiras impostas por Salles ao trabalho da PF e da
PGR, Bolsonaro já deveria tê-lo afastado, como ocorreu com o presidente do
Ibama, Eduardo Bim, também investigado. Enquanto Salles resiste, foi retirado
do cargo o delegado Saraiva. Após apresentar a notícia-crime, ele recebeu ordem
para parar de atuar na Amazônia. No final de maio, assumiu função na PF de
Volta Redonda (RJ), a 8 horas de viagem de Manaus.
Brasil está diante de oportunidade de
reavaliar política para a Venezuela
O Globo
A ficha corrida do ditador venezuelano
Nicolás Maduro já é grande e grave o suficiente para ter justificado uma
investigação preliminar que poderá levá-lo ao banco dos réus no Tribunal Penal
Internacional, que julga crimes contra a humanidade. Maduro foi eleito em 2013
e, de lá para cá, a renda per capita da Venezuela perdeu mais de dois terços do
valor, maior queda registrada na história da América Latina. Os índices de
pobreza explodiram, a qualidade de vida despencou, e mais de 5 milhões
emigraram. Raramente uma situação dessas foi registrada fora de cenários de
guerra. Para completar, o regime sob seu comando fraudou eleições, censurou a
imprensa, perseguiu e prendeu opositores.
É por isso que a comunidade internacional
tenta há anos uma solução para o “problema Venezuela”. Em 2019, na
administração Donald Trump, os americanos adotaram uma campanha de “pressão
máxima”. Determinaram o congelamento de bens nos Estados Unidos e avisaram que
indivíduos, empresas e países com negócios na Venezuela seriam alvo de sanções.
Trump chegou a cogitar uma invasão para
desalojar Maduro do Palácio de Miraflores. A aposta era que, diante da ameaça,
setores das Forças Armadas venezuelanas retirariam apoio ao regime. Na
realidade, ocorreu o contrário. Maduro se fortaleceu. Quem se enfraqueceu foi
um dos principais nomes da oposição, Juan Guaidó, reconhecido por dezenas de
países — Brasil inclusive — como presidente interino.
Com Joe Biden na Casa Branca, cresce a
possibilidade de mudança na política dos Estados Unidos para a Venezuela. A
circunstância externa abre ao Brasil a oportunidade de reavaliar a política de
confronto aberto com Maduro e submissão incondicional aos desígnios americanos,
adotada pelo ex-chanceler Ernesto Araújo — que chegou a desprezar oxigênio
venezuelano doado ao Brasil para ajudar vítimas da pandemia em Manaus.
Em Washington, observadores avaliam que
Maduro, pressionado pela realidade econômica, está em busca de concessões.
Acham difícil que Biden acabe com as sanções, mas dizem que o alvo da Casa
Branca não é mais a “mudança de regime”, mas sim a “melhora do regime”. A
discussão em Brasília é semelhante. Com a chegada do ministro Carlos França ao
Itamaraty, setores do governo, sobretudo na ala militar, defendem a revisão na
estratégia brasileira. Uma das ideias é reabrir o consulado em Caracas, fechado
em março de 2020. Qualquer mudança ainda depende da decisão de Jair Bolsonaro.
Adotar uma postura menos agressiva faz
sentido por dois motivos. Primeiro, porque a política do confronto se provou
ineficaz. Segundo, porque, sem contato com Maduro, fica difícil entender o que
a ditadura quer e o que tem a oferecer em troca da distensão. Com Araújo, o
Brasil perdeu a posição de mediador natural diante da Venezuela. Recuperá-la ajudaria
a resgatar um pouco de nosso prestígio e influência regional perdidos. É do
interesse estratégico do Brasil que se procure uma solução para a crise no país
vizinho — sem nunca esquecer quem Maduro é.
Recuperar o ensino
Folha de S. Paulo
Governantes e educadores precisam reagir,
pois do ministério nada resta esperar
Com 191 dias de escolas fechadas, o Brasil
se alinha, em matéria de incúria com a educação na pandemia, a vários países da
América Latina e do Caribe. Essa região se destaca, segundo a Unesco, por ter
deixado crianças e jovens com mais dias sem aula (158, em média) de março de
2020 a fevereiro de 2021.
A média mundial ficou em 95 dias de escolas
fechadas. Outras regiões do planeta também se excederam ao dizimar o
aprendizado por quase um ano, como sul da Ásia (146 dias) e sudeste da África
(101) —países pobres em que a desigualdade se acentuará sobremaneira com o
atraso imposto a estudantes mais desassistidos.
A tendência global se inverteu em setembro
de 2020, quando a maioria das nações abriu portas de colégios. Não aqui: de
acordo com o Conselho Nacional de Secretários de Educação, 20 unidades da
Federação seguem quase inteiramente sem aulas presenciais, e as outras 7
realizam-nas só de modo parcial.
Estudo do
Instituto Unibanco e do Insper estima que a perda de aprendizado
para 35 milhões de alunos de ensino fundamental e médio implicará redução em
sua renda de R$ 430 mil ao longo da vida. Tudo somado, um impacto de R$ 1,5
trilhão para o país.
No cálculo do economista Ricardo Paes de
Barros, para cada dia fora da classe, o déficit no aprendizado equivale a quase
dois (1,55). Um aluno que tenha progredido do 2º ao 3º ano do ensino médio na
pandemia, estima o estudo, pode concluir esse nível com proficiência em
português e matemática pior do que o da entrada.
Resta evidente a irresponsabilidade de
preconizar reversão do que for possível em tamanho prejuízo apenas quando a
pandemia acabar. Não existe tal opção, em que pese a omissão de um Ministério
da Educação desmontado pelo presidente Jair Bolsonaro a golpes de desvario
ideológico.
Cabe a governadores e prefeitos conter o
descalabro. Mesmo que isso só seja factível em esquema híbrido, modulando a
proporção entre aulas presenciais e remotas conforme a gravidade da epidemia de
Covid-19 e o avanço da vacinação, seria crime de lesa-juventude permanecer
paralisado.
O estudo Unibanco/Insper projeta que um
esforço concentrado no segundo semestre pode recuperar 40% da perda de
aprendizado. Não faltam tecnologias e métodos para tornar mais produtivo o
ensino a distância, se inevitável for.
Mão à obra, portanto. Profissionais do
ensino, sobretudo nas escolas públicas, precisam insuflar seu justo movimento
por vacinação com zelo redobrado pelo resgate de seus alunos, pois nenhum
educador que mereça o nome pode conformar-se com abandonar um único que seja
pelo caminho.
O erro chinês
Folha de S. Paulo
Gigante asiático vai corrigindo tardiamente
política de controle de natalidade
Ao
contrário do Brasil, a China realizou seu censo populacional na data estipulada
(2020), e os resultados da pesquisa, que mal começaram a ser divulgados, já vão
deflagrando mudanças importantes nas políticas públicas do país.
Ao que tudo indica, muito em breve os
casais chineses receberão autorização
para ter um terceiro filho. Para o país que durante uma geração
inteira impôs a política do filho único, trata-se de contraste gritante. Mas a
medida é tardia e provavelmente insuficiente.
Tardia porque mais de três décadas de
política de filho único fizeram com que a população chinesa esteja envelhecendo
muito rapidamente. Isso significa mais pressão por gastos em saúde e
previdência e menos jovens a compor a população economicamente ativa que
financiará a despesa.
O desequilíbrio etário não foi o único
resultado da política de filho único. Devido à tradição local do dote no
casamento, filhos homens sempre foram mais valorizados do que mulheres
(significavam um importante dispêndio a menos para a família). Com o advento
das ultrassonografias, veio o fenômeno dos abortos seletivos.
Como os casais só podiam ter um filho,
asseguravam-se de que a criança fosse do sexo masculino. Nos grupos etários
mais afetados pelo fenômeno, hoje na adolescência ou saindo dela, há cerca de
120 homens para cada 100 mulheres.
A liberação do terceiro filho é
provavelmente insuficiente porque, em 2015, a China já havia passado a admitir
que as famílias tivessem dois. A mudança, entretanto, mal afeta a taxa de
fecundidade, que está em 1,3 filho por mulher, bastante abaixo dos 2,1
necessários para manter a população estável.
Autorizações estatais não afetam os
principais freios à natalidade, que são a urbanização e a educação das
mulheres. Se, no campo, cada filho a mais representa um par de braços extra
para trabalhar e gerar renda para a família, na cidade significa mais uma
rubrica de despesas e um embaraço logístico a atrapalhar a carreira dos pais.
Pela experiência internacional, sempre que
as meninas vão para a escola e a urbanização se amplia, a fecundidade cai. Isso
ocorreu no Brasil e, ainda mais, no Irã.
O Politburo chinês provavelmente optou por manter um limite para não assumir que a política do filho único foi um erro. É possível que em breve a potência asiática se veja forçada a abraçar políticas mais ativas de estímulo à natalidade.
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