- Folha de S. Paulo / O Globo
O vice-presidente Hamilton Mourão tocou num
nervo sensível da política de hoje: a necessidade
de se "evitar que a anarquia se instaure dentro das Forças".
Referia-se à escalafobética participação
do general Eduardo Pazuello num palanque político, absorvida pelo
comandante do Exército, abrindo um novo capítulo na história da anarquia
militar, o da indisciplina bolsonarizada.
Não se pode prever a duração nem o desfecho
dessa desordem.
Em 1964 o general Jair Dantas Ribeiro,
ministro do Exército, foi ao comício de João Goulart no dia 13 de março. Ambos
acreditavam que o governo se apoiava num dispositivo de oficiais e sargentos
fiéis. (O general Castello Branco reconheceu-o, meio escondido, e mostrou sua
surpresa ao colega Artur da Costa e Silva.)
É sabido que, quando a política entra nos
quartéis por uma porta, a disciplina sai por outra. Ela sai aos poucos. No
século passado, o dispositivo palaciano juntava oficiais e sargentos. Hoje,
como na Venezuela e no último golpe boliviano, somam-se comandantes e oficiais
de polícias. Piorou a anarquia.
Os repórteres Marcelo Godoy e Felipe Frazão
mostraram que na indisciplina bolsonariana há um buraco mais embaixo.
No dia 4 de maio, um sargento da 15ª
Brigada de Infantaria Motorizada participou de uma fala do deputado Major Vitor
Hugo defendendo mudanças no sistema de promoções dos graduados. (Nada muito
diferente do que fazia o capitão Jair Bolsonaro.)
O general
Ernesto Geisel definiu Bolsonaro como "um mau militar" e
seu rigor pelo respeito à disciplina militar remete a um episódio ocorrido em
fevereiro de 1972.
O Brasil era presidido pelo general
Emílio Médici e faltavam dois anos para o fim de seu mandato. Ele
proibiria que a imprensa tratasse da sua sucessão.
Geisel estava na presidência da Petrobras
e, num país de 100 milhões de habitantes, talvez fossem 500 as pessoas capazes
de prever que ele seria o próximo presidente. Sabendo como seu nome vinha sendo
costurado, não passavam de 50. Com intimidade para tratar do assunto com ele,
talvez 20.
Para surpresa de Geisel, um sargento que
havia sido seu motorista foi à sua casa para despedir-se e perguntou-lhe quando
iria para Brasília.
— Ah, eu não vou — respondeu o general.
— Vai sim. O senhor vai ser presidente —
informou o sargento.
Horas depois, Geisel contou a cena ao seu
assistente, Heitor Ferreira, e expôs sua contrariedade:
— Quer dizer que [...] sargento também já está de novo se metendo nisso?
Os
enganos de Paulo Guedes são seletivos
O ministro
Paulo Guedes informou à CPI da Covid que não destinou recursos
específicos para o combate ao coronavírus no projeto da lei orçamentária porque
"não se vislumbrou a continuidade bem como o recrudescimento da pandemia da
Covid-19 no patamar atingido em 2021": "Achávamos que a pandemia
estava acabando não por má-fé, foi um engano".
Põe engano nisso. Neste ano já
morreram mais de 273 mil pessoas, contra 194 mil em 2020. Pode-se
aceitar a boa-fé do doutor, mesmo sabendo-se que é o sumo sacerdote da economia
num governo cujo presidente
falou em "gripezinha", decretou o "finalzinho" da epidemia
e chamou de "conversinha" a possibilidade da chegada de uma segunda
onda. O próprio "Posto Ipiranga" mostrou, em abril de
2020, que acreditava em lorotas. Ele falou de um amigo inglês que oferecia 40
milhões de testes por mês.
Os enganos de Paulo Guedes são seletivos.
Numa reunião pra lá de esquisita do Conselho de Saúde Suplementar, contou a
história do filho de seu porteiro, que tirou zero no exame de uma
universidade privada e conseguiu um empréstimo do Fundo de Financiamento ao
Estudante do Ensino Superior, o Fies.
Esqueceu-se de datar o episódio. Ele só
pode ter ocorrido antes de 2015, quando o ministro Cid Gomes acabou com essa
mamata das universidades privadas. Era coisa daqueles que Guedes chamava de
"criaturas do pântano político, piratas privados e burocratas corruptos,
associados na pilhagem do Estado".
Na reunião do Conselho de Saúde
Suplementar, Guedes ouviu os pleitos das operadoras de medicina privada que
articulam um avanço contra os recursos do SUS e o bolso de seus clientes.
Trata-se de uma armação que rolou em segredo, foi denunciada, encolheu e
ressurgiu no escurinho da pandemia.
Paulo Guedes, como muita gente boa,
apresenta-se como um campeão da iniciativa privada e demoniza a ação do
governo, capaz de criar maluquices como o Fies original. Sem os "piratas
privados", ele nunca teria existido, mas os maganos continuam aí, apoiando
o governo.
Guedes gostaria de viver no mundo de
professores da Universidade de Chicago, onde se formou. Pena que a Chicago onde
ele se meteu seja outra.
Professor Thomas Sowell conta que foi
educado pelos fatos
Acaba de sair nos Estados Unidos uma
biografia do professor
Thomas Sowell. Coincide com seu 90º aniversário e é pedestre, mas
conta uma grande vida.
Sowell nasceu numa casa que não tinha água
encanada nem eletricidade e foi criado por uma tia-avó no Harlem de Nova York.
Ralou na pobreza e alistou-se no Corpo de Fuzileiros. Na juventude não podia
sentar-se em mesas de brancos nos restaurantes e foi marxista. Diplomou-se
por Harvard aos
28 anos e dez anos depois doutorou-se pela Universidade de Chicago, debaixo das
asas dos economistas Milton Friedman e George Stigler. Ambos recomendaram-no
para uma bolsa de estudos argumentando que ele era socialista, "porém
muito esperto para continuar assim por muito tempo".
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Na mosca. Sowell tornou-se uma espécie de
Cão da Terceira Hora do conservadorismo político e econômico. Contesta a
eficácia das políticas afirmativas, das cotas aos estímulos à diversidade. A
seu juízo, a eleição de Joe Biden pode vir a representar o início da decadência
do Império Americano.
A migração de Sowell teve duas vertentes.
Numa esteve o respeito aos números: "Quando você percebe a importância dos
fatos, o jogo é outro". Noutra, ficou longe do poder. Não é à toa que a
biografia chama-se "Maverick", algo como "dissidente", numa
tradução neutra, ou "porra-louca", em versão maligna. Afinal, um
negro saído da pobreza não deveria ser conservador, muito menos intransigente.
Milton Friedman teve a coragem de dizer que
"a palavra 'gênio' tem sido tão esbanjada que perdeu o sentido, mas eu
acho que Tom Sowell está perto de ser um deles".
Com 36 livros
publicados e centenas de artigos, Sowell celebrizou-se pela
clareza de seus raciocínios. Um exemplo, tirado da sua análise do colapso das
economias do finado mundo socialista: "O sistema tinha um problema
inerente de conhecimento. Em poucas palavras: quem tinha poder não tinha
conhecimento e quem tinha conhecimento não tinha poder".
Esse diagnóstico vale para o meio
onde Paulo Guedes se
meteu.
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