domingo, 6 de junho de 2021

Elio Gaspari - A anarquia militar de Bolsonaro prevaleceu

- Folha de S. Paulo / O Globo

O vice-presidente Hamilton Mourão tocou num nervo sensível da política de hoje: a necessidade de se "evitar que a anarquia se instaure dentro das Forças". Referia-se à escalafobética participação do general Eduardo Pazuello num palanque político, absorvida pelo comandante do Exército, abrindo um novo capítulo na história da anarquia militar, o da indisciplina bolsonarizada.

Não se pode prever a duração nem o desfecho dessa desordem.

Em 1964 o general Jair Dantas Ribeiro, ministro do Exército, foi ao comício de João Goulart no dia 13 de março. Ambos acreditavam que o governo se apoiava num dispositivo de oficiais e sargentos fiéis. (O general Castello Branco reconheceu-o, meio escondido, e mostrou sua surpresa ao colega Artur da Costa e Silva.)

É sabido que, quando a política entra nos quartéis por uma porta, a disciplina sai por outra. Ela sai aos poucos. No século passado, o dispositivo palaciano juntava oficiais e sargentos. Hoje, como na Venezuela e no último golpe boliviano, somam-se comandantes e oficiais de polícias. Piorou a anarquia.

Os repórteres Marcelo Godoy e Felipe Frazão mostraram que na indisciplina bolsonariana há um buraco mais embaixo.

No dia 4 de maio, um sargento da 15ª Brigada de Infantaria Motorizada participou de uma fala do deputado Major Vitor Hugo defendendo mudanças no sistema de promoções dos graduados. (Nada muito diferente do que fazia o capitão Jair Bolsonaro.)

O general Ernesto Geisel definiu Bolsonaro como "um mau militar" e seu rigor pelo respeito à disciplina militar remete a um episódio ocorrido em fevereiro de 1972.

O Brasil era presidido pelo general Emílio Médici e faltavam dois anos para o fim de seu mandato. Ele proibiria que a imprensa tratasse da sua sucessão.

Geisel estava na presidência da Petrobras e, num país de 100 milhões de habitantes, talvez fossem 500 as pessoas capazes de prever que ele seria o próximo presidente. Sabendo como seu nome vinha sendo costurado, não passavam de 50. Com intimidade para tratar do assunto com ele, talvez 20.

Para surpresa de Geisel, um sargento que havia sido seu motorista foi à sua casa para despedir-se e perguntou-lhe quando iria para Brasília.

— Ah, eu não vou — respondeu o general.

— Vai sim. O senhor vai ser presidente — informou o sargento.

Horas depois, Geisel contou a cena ao seu assistente, Heitor Ferreira, e expôs sua contrariedade:

— Quer dizer que [...] sargento também já está de novo se metendo nisso?

 Os enganos de Paulo Guedes são seletivos

ministro Paulo Guedes informou à CPI da Covid que não destinou recursos específicos para o combate ao coronavírus no projeto da lei orçamentária porque "não se vislumbrou a continuidade bem como o recrudescimento da pandemia da Covid-19 no patamar atingido em 2021": "Achávamos que a pandemia estava acabando não por má-fé, foi um engano".

Põe engano nisso. Neste ano já morreram mais de 273 mil pessoas, contra 194 mil em 2020. Pode-se aceitar a boa-fé do doutor, mesmo sabendo-se que é o sumo sacerdote da economia num governo cujo presidente falou em "gripezinha", decretou o "finalzinho" da epidemia e chamou de "conversinha" a possibilidade da chegada de uma segunda onda. O próprio "Posto Ipiranga" mostrou, em abril de 2020, que acreditava em lorotas. Ele falou de um amigo inglês que oferecia 40 milhões de testes por mês.

Os enganos de Paulo Guedes são seletivos. Numa reunião pra lá de esquisita do Conselho de Saúde Suplementar, contou a história do filho de seu porteiro, que tirou zero no exame de uma universidade privada e conseguiu um empréstimo do Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior, o Fies.

Esqueceu-se de datar o episódio. Ele só pode ter ocorrido antes de 2015, quando o ministro Cid Gomes acabou com essa mamata das universidades privadas. Era coisa daqueles que Guedes chamava de "criaturas do pântano político, piratas privados e burocratas corruptos, associados na pilhagem do Estado".

Na reunião do Conselho de Saúde Suplementar, Guedes ouviu os pleitos das operadoras de medicina privada que articulam um avanço contra os recursos do SUS e o bolso de seus clientes. Trata-se de uma armação que rolou em segredo, foi denunciada, encolheu e ressurgiu no escurinho da pandemia.

Paulo Guedes, como muita gente boa, apresenta-se como um campeão da iniciativa privada e demoniza a ação do governo, capaz de criar maluquices como o Fies original. Sem os "piratas privados", ele nunca teria existido, mas os maganos continuam aí, apoiando o governo.

Guedes gostaria de viver no mundo de professores da Universidade de Chicago, onde se formou. Pena que a Chicago onde ele se meteu seja outra.

Professor Thomas Sowell conta que foi educado pelos fatos

Acaba de sair nos Estados Unidos uma biografia do professor Thomas Sowell. Coincide com seu 90º aniversário e é pedestre, mas conta uma grande vida.

Sowell nasceu numa casa que não tinha água encanada nem eletricidade e foi criado por uma tia-avó no Harlem de Nova York. Ralou na pobreza e alistou-se no Corpo de Fuzileiros. Na juventude não podia sentar-se em mesas de brancos nos restaurantes e foi marxista. Diplomou-se por Harvard aos 28 anos e dez anos depois doutorou-se pela Universidade de Chicago, debaixo das asas dos economistas Milton Friedman e George Stigler. Ambos recomendaram-no para uma bolsa de estudos argumentando que ele era socialista, "porém muito esperto para continuar assim por muito tempo".

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Na mosca. Sowell tornou-se uma espécie de Cão da Terceira Hora do conservadorismo político e econômico. Contesta a eficácia das políticas afirmativas, das cotas aos estímulos à diversidade. A seu juízo, a eleição de Joe Biden pode vir a representar o início da decadência do Império Americano.

A migração de Sowell teve duas vertentes. Numa esteve o respeito aos números: "Quando você percebe a importância dos fatos, o jogo é outro". Noutra, ficou longe do poder. Não é à toa que a biografia chama-se "Maverick", algo como "dissidente", numa tradução neutra, ou "porra-louca", em versão maligna. Afinal, um negro saído da pobreza não deveria ser conservador, muito menos intransigente.

Milton Friedman teve a coragem de dizer que "a palavra 'gênio' tem sido tão esbanjada que perdeu o sentido, mas eu acho que Tom Sowell está perto de ser um deles".

Com 36 livros publicados e centenas de artigos, Sowell celebrizou-se pela clareza de seus raciocínios. Um exemplo, tirado da sua análise do colapso das economias do finado mundo socialista: "O sistema tinha um problema inerente de conhecimento. Em poucas palavras: quem tinha poder não tinha conhecimento e quem tinha conhecimento não tinha poder".

Esse diagnóstico vale para o meio onde Paulo Guedes se meteu.

 

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