segunda-feira, 26 de julho de 2021

Demétrio Magnoli - Funilaria de segunda

O Globo

O Brasil, que não é para amadores, já inventou o presidencialismo de coalizão e, agora, pondera fabricar o semipresidencialismo. A geringonça nasceu na mente de aspirantes a bombeiro que imaginam inaugurá-la em 2022, mas fez seu caminho até a prancheta de gente mais séria, cujo horizonte é 2026. Os primeiros não ligam para as regras da democracia. Os segundos querem revitalizar um sistema falido.

Semipresidencialismo em 2022 é um antídoto contra o impeachment de Bolsonaro ou contra o retorno de Lula — ou, ainda, contra as maquinações golpistas que gotejam do Planalto para a casamata de militares bolsonaristas comandada por Braga Netto. Nas três hipóteses, seria um golpe parlamentar, pois o instituto da reeleição estabelece um intervalo presidencialista de dois mandatos consecutivos.

O debate do semipresidencialismo para 2026 não viola as regras do jogo. Contudo, na forma atual, circunda o núcleo do problema estrutural, que está localizado no sistema partidário.

Os autores da Constituição de 1988 inspiraram-se nos Estados Unidos para esculpir nosso sistema político. Nessa linha, criaram uma Presidência forte, contrabalançando-a com um Congresso poderoso. Ignoraram a circunstância de que, lá, a estabilidade institucional assenta-se sobre um bipartidarismo enraizado no rochedo da História.

Nos EUA, o bipartidarismo assegura ao Executivo uma ampla base de apoio parlamentar, mesmo quando o presidente carece de maioria. No Brasil, pelo contrário, um multipartidarismo amorfo e expansivo compele o presidente à busca perene de maiorias parlamentares ocasionais. Desse mecanismo de intercâmbios, surgiu o tal presidencialismo de coalizão, nome sofisticado que os cientistas políticos aplicaram a um sistema tendente à corrupção crônica.

A introdução da reeleição, por iniciativa de FH, e a multiplicação das siglas partidárias, como efeito de um sistema eleitoral teratológico, agravaram as disfunções originais. O mensalão e o petrolão derivaram da busca de base parlamentar por presidentes petistas incapazes de formar maiorias políticas no Congresso. Bolsonaro, com seu “orçamento secreto”, segue trajetória paralela. O semipresidencialismo, tal como definido na PEC em tramitação, tenta normalizar um sistema político que implode em câmera lenta.

A geringonça desenhada na PEC alega inspirar-se em sistemas como os da França e de Portugal. Os dois são diferentes entre si, mas compartilham o traço distintivo dos sistemas parlamentaristas europeus: o multipartidarismo limitado.

Nas duas nações, o sistema eleitoral distrital evita a expansão exagerada do número de partidos. Dez partidos têm assentos parlamentares na França; em Portugal, são sete. O semipresidencialismo de 30 partidos proposto no Brasil seria, no máximo, uma máscara carnavalesca destinada a disfarçar as operações de cooptação do presidencialismo de coalizão. De quebra, na prática, ainda que não na lei, ofereceria ao presidente um seguro contra o impeachment.

“O semipresidencialismo é uma evolução do presidencialismo. Não é um novo regime, é um novo modelo de governança”, explica o deputado Samuel Moreira, arquiteto da PEC. Assim, a lição lampedusiana — “mudar tudo, para que tudo permaneça como sempre foi” — ganha uma versão tropical. Trata-se de retocar a maquiagem, para que tudo permaneça igual.

A proposta conserva a reeleição presidencial e o sistema eleitoral que faz da criação de partidos um negócio tão lucrativo quanto a de sindicatos ou igrejas. Também permite a nomeação de qualquer preposto presidencial (“pode ser um parente do presidente que exerce atividade política”, segundo o cândido Samuel Moreira) à chefia de governo. De acordo com sua lógica, a troca de primeiro-ministro funcionaria exclusivamente como sinalização das tradicionais reformas ministeriais que pagam a fatura de um novo intercâmbio fisiológico.

É uma funilaria de segunda na carcaça de um presidencialismo de coalizão arruinado pelo impeachment de Dilma Rousseff e pela hecatombe cívico-militar bolsonarista. Em nome do pudor, ao menos deixem franceses e portugueses fora dessa história deplorável.

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