O Globo
O Brasil, que não é para amadores, já
inventou o presidencialismo de coalizão e, agora, pondera fabricar o
semipresidencialismo. A geringonça nasceu na mente de aspirantes a bombeiro que
imaginam inaugurá-la em 2022, mas fez seu caminho até a prancheta de gente mais
séria, cujo horizonte é 2026. Os primeiros não ligam para as regras da
democracia. Os segundos querem revitalizar um sistema falido.
Semipresidencialismo em 2022 é um antídoto
contra o impeachment de Bolsonaro ou contra o retorno de Lula — ou, ainda,
contra as maquinações golpistas que gotejam do Planalto para a casamata de
militares bolsonaristas comandada por Braga Netto. Nas três hipóteses, seria um
golpe parlamentar, pois o instituto da reeleição estabelece um intervalo
presidencialista de dois mandatos consecutivos.
O debate do semipresidencialismo para 2026
não viola as regras do jogo. Contudo, na forma atual, circunda o núcleo do
problema estrutural, que está localizado no sistema partidário.
Os autores da Constituição de 1988 inspiraram-se nos Estados Unidos para esculpir nosso sistema político. Nessa linha, criaram uma Presidência forte, contrabalançando-a com um Congresso poderoso. Ignoraram a circunstância de que, lá, a estabilidade institucional assenta-se sobre um bipartidarismo enraizado no rochedo da História.
Nos EUA, o bipartidarismo assegura ao
Executivo uma ampla base de apoio parlamentar, mesmo quando o presidente carece
de maioria. No Brasil, pelo contrário, um multipartidarismo amorfo e expansivo
compele o presidente à busca perene de maiorias parlamentares ocasionais. Desse
mecanismo de intercâmbios, surgiu o tal presidencialismo de coalizão, nome
sofisticado que os cientistas políticos aplicaram a um sistema tendente à
corrupção crônica.
A introdução da reeleição, por iniciativa
de FH, e a multiplicação das siglas partidárias, como efeito de um sistema
eleitoral teratológico, agravaram as disfunções originais. O mensalão e o
petrolão derivaram da busca de base parlamentar por presidentes petistas
incapazes de formar maiorias políticas no Congresso. Bolsonaro, com seu
“orçamento secreto”, segue trajetória paralela. O semipresidencialismo, tal
como definido na PEC em tramitação, tenta normalizar um sistema político que
implode em câmera lenta.
A geringonça desenhada na PEC alega
inspirar-se em sistemas como os da França e de Portugal. Os dois são diferentes
entre si, mas compartilham o traço distintivo dos sistemas parlamentaristas
europeus: o multipartidarismo limitado.
Nas duas nações, o sistema eleitoral
distrital evita a expansão exagerada do número de partidos. Dez partidos têm
assentos parlamentares na França; em Portugal, são sete. O semipresidencialismo
de 30 partidos proposto no Brasil seria, no máximo, uma máscara carnavalesca
destinada a disfarçar as operações de cooptação do presidencialismo de coalizão.
De quebra, na prática, ainda que não na lei, ofereceria ao presidente um seguro
contra o impeachment.
“O semipresidencialismo é uma evolução do
presidencialismo. Não é um novo regime, é um novo modelo de governança”,
explica o deputado Samuel Moreira, arquiteto da PEC. Assim, a lição
lampedusiana — “mudar tudo, para que tudo permaneça como sempre foi” — ganha
uma versão tropical. Trata-se de retocar a maquiagem, para que tudo permaneça
igual.
A proposta conserva a reeleição
presidencial e o sistema eleitoral que faz da criação de partidos um negócio
tão lucrativo quanto a de sindicatos ou igrejas. Também permite a nomeação de
qualquer preposto presidencial (“pode ser um parente do presidente que exerce
atividade política”, segundo o cândido Samuel Moreira) à chefia de governo. De
acordo com sua lógica, a troca de primeiro-ministro funcionaria exclusivamente
como sinalização das tradicionais reformas ministeriais que pagam a fatura de
um novo intercâmbio fisiológico.
É uma funilaria de segunda na carcaça de um presidencialismo de coalizão arruinado pelo impeachment de Dilma Rousseff e pela hecatombe cívico-militar bolsonarista. Em nome do pudor, ao menos deixem franceses e portugueses fora dessa história deplorável.
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