Valor Econômico
Reformular o Sistema S seria um ótimo
exemplo
Causou polêmica na semana passada a
declaração do secretário de Política Econômica, Adolfo Saschida, na “Live”
do Valor: “Temos
que passar a faca no Sistema S; tem que tirar dinheiro deles para transferir
para o jovem carente”.
Na entrevista ao diretor-adjunto de redação
Cristiano Romero e à repórter Edna Simão, Saschida apresentou as linhas gerais
do novo programa que o governo planeja lançar para atacar dois problemas que
foram agravados pela pandemia: o desemprego e a baixa qualificação dos jovens
brasileiros.
A intenção da equipe do ministro Paulo
Guedes é proporcionar à famosa geração nem-nem - o imenso contingente de jovens
que nem trabalham e nem estudam - uma possibilidade de inserção no mercado de
trabalho por meio da combinação de concessão de bolsas de R$ 550 mensais,
estágios em empresas e cursos de qualificação profissional.
Sem dinheiro no caixa para financiar as ações, a proposta do Ministério da Economia é empurrar a fatura para o setor privado - metade dos recursos seriam bancados pelas empresas que ofertarem vagas aos jovens, e a outra viria de uma “facada” nas entidades vinculadas às confederações patronais que representam os interesses da indústria, do comércio, agropecuária e transportes, entre outros.
A declaração do secretário de Política
Econômica causou reação imediata, claro, dos dirigentes patronais, mas também
da população em geral, nas redes sociais. A perspectiva de interferência em
organizações que proveem capacitação profissional soou como mais um atentado do
governo contra a educação. É o preço a se pagar por fazer parte da equipe de
Bolsonaro; sempre se desconfia de que a proposta seja nefasta, mesmo quando a
causa faz todo o sentido.
O Sistema S é daqueles institutos
brasileiros difíceis de serem explicados para um estrangeiro. Legítimas
jabuticabas nacionais, são instituições privadas voltadas para o treinamento
profissional e a assistência social de seus empregados, mas custeadas por
tributos embutidos nos preços dos produtos e serviços consumidos por toda a
coletividade. Para completar a bizarrice, essa incrível massa de recursos
públicos é administrada com liberdade quase irrestrita pelo próprio setor
beneficiado.
A ideia é uma herança de Getúlio Vargas,
que por meio de um decreto-lei criou, em 1942, o então Serviço Nacional de
Aprendizagem dos Industriários (Senai). Com o fim da ditadura varguista e
também da Segunda Guerra Mundial, o presidente Eurico Gaspar Dutra replicou o
modelo para o comércio, com a criação do Senac, e mais do que isso, estendeu
sua atuação para a assistência social, fundando os Serviços Sociais da
Indústria e do Comércio - respectivamente Sesi e Sesc. Na época acreditava-se
na colaboração entre o empresariado e o Estado para prover bem-estar para as
classes trabalhadoras.
A ditadura militar também deu sua
contribuição para a construção desse sistema paraestatal, com a instituição, em
1972, de um organismo para a promoção das pequenas e médias empresas;
inicialmente batizado de Cebrae, a sigla mudou em 1990 para Sebrae, para manter
a coerência com suas congêneres.
Com a redemocratização, Collor atendeu aos
pleitos do agronegócio e lançou o Senar, de aprendizagem rural, enquanto Itamar
Franco dobrou-se às pressões do setor de transportes e criou o sistema
Sest/Senat. Com FHC as cooperativas ganharam o Sescoop, e Lula inovou com uma
Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (Apex-Brasil) e
outra de Desenvolvimento Industrial (ABDI).
Como acontece em geral com os programas
governamentais e suas parcerias com o setor privados, muito pouco se sabe sobre
a efetividade e a eficiência das transferências de renda no Brasil. Num dos
poucos estudos mais aprofundados realizados sobre o Sistema S, os economistas
Thais Nikito (Udesc), Regis Ely e Felipe Ribeiro (ambos da UFPel) utilizaram
dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2014 para
demonstrar que a participação em cursos oferecidos pelo Sebrae, Senac e Senai
estimula a formalização de empreendedores e eleva as jornadas de trabalho e os
rendimentos.
Também pudera: de acordo com dados da
Secretaria da Receita Federal, os 11 Serviços Sociais Autônomos absorveram, em
2020, R$ 16,5 bilhões em tributos incidentes sobre a folha de pagamentos das
empresas brasileiras. Diante de um volume tão grande de recursos sugados das
empresas e consumidores brasileiros, o mínimo que se espera deles são
resultados positivos. A grande questão é se esses custos justificam a
existência de uma estrutura tão inchada.
Com recursos abundantes e unidades
espalhadas por todos os Estados e centenas de municípios, o Sistema S desperta
a cobiça de políticos de todos os matizes e de dirigentes empresariais que se
especializam em viver do dinheiro público.
Embora sejam financiadas majoritariamente
por impostos, essas entidades possuem natureza jurídica de direito privado, o
que significa que não estão sujeitas a todas as exigências e controles
aplicáveis à administração pública, como a realização de concursos para a
seleção de pessoal e regimes rigorosos de licitação. Como resultado, denúncias
de nepotismo, superfaturamento de contratos e obras e favorecimento na
contratação de empregados são frequentemente apresentadas ao Tribunal de Contas
da União e ao Ministério Público.
A caixa-preta do Sistema S só começou a ser
aberta em 2019, quando um decreto de Bolsonaro determinou que os serviços
autônomos mantidos com verbas públicas publiquem suas contas na internet.
Graças a isso, podemos constatar distorções do topo à base: de dirigentes que
recebem quase R$ 70 mil a garçons e motoristas com salários acima de R$ 5 mil
mensais.
Empresários nacionais reclamam, com razão,
da elevada carga tributária, de órgãos ineficientes onde imperam indicações
políticas e cabides de empregos, acompanhados de um funcionalismo inchado,
recebendo supersalários distantes da realidade. Cortar a própria gordura,
passando a faca no seu Sistema S, seria um excelente exemplo de reforma que o
empresariado poderia oferecer à sociedade brasileira.
*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.
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