Folha de S. Paulo
Reforma é elemento retórico da política mas
pode vir não como farsa mas tragédia
A metralhadora giratória d’As Farpas não
mirou apenas o imperador Pedro II em sua visita à Portugal, embora neste caso,
como sabemos, as repercussões tenham sido surpreendentes: uma celeuma
transatlântica e uma violenta revolta popular (aliás, esplendidamente descrita
por Paulo Cavalcanti, em “Eça de Queiroz, agitador no Brasil”, 1959).
As penas de Eça e Malheiros, os autores
daquele pasquim, miraram também um tipo que assolava a política portuguesa, e
que também sempre existiu entre nós: o reformista retórico, que contrapunha ao
reformador, este sim efetivo.
Eça chegou a anunciar, fazendo galhofa, um
futuro livro, em que antecipava o uso do vocábulo entre nós: Da Physiologia das
Reformas.
O cronista mordaz descreve numerosos
subtipos de reformista: reformocas, reformaricas, reformudos, reformatóxicos,
reformengos, reformatotes, reformantes, reformativos, reformeiros,
reformavaros, reformânticos, reformínimos, reformecos, reforminhos.
E mais: reformélico, reformárquicos,
reformirtos, reformonagros, reformopides, reformodres, reformigansos,
reformagros, reformevos, reformilhas, reformônidas, reformanbicosos,
reformífugos, reformafóbicos, reformigalhos, reformafétidos.
A reforma é parte integrante da política parlamentar: a crítica de Eça volta-se para quando ela vira elemento apenas retórico, ritualístico. “As reformas dos Srs. ministros são como as fardas dos Srs. ministros. As fardas servem para ir ao paço, às galas, ao beija-mão. São o distintivo oficial e bordado dos que governam. Assim, as reformas. Com elas o ministro governa, ilude, caracola.”
Mas elas têm propósito específico: “As
reformas políticas servem um ou dois meses para um ministério fingir que
administra, iludir a nação ingênua, imitar a iniciativa fecunda dos
reformadores ‘lá de fora’ , aparentar zelo pelo bem da pátria, justificar a sua
permanência no poder, fornecer alimento à oratória constitucional”.
As farpas veio-me à mente por causa de dois
eventos. O primeiro, a reforma política que, segundo um colega cientista
político garante, aparece na agenda com precisão matemática a cada ano ímpar.
Eu acrescentaria que agora inverteu-se a fórmula: ela aparece não como farsa,
mas como tragédia, tal o descalabro da
proposta do distritão.
O segundo, por causa da retórica das
reformas atuais em um contexto improvável de pandemia e de fim de festa, em que
a propositura de versões desidratadas aparece
como mero ritual.
Esta retórica tem estado presente entre nós desde a Regência, e também à esquerda: desde as “reformas de base” (reformânticos?), o que quer que esta palavra de ordem signifique, até a reformofobia recente em que ela embarcou.
*Professor da Universidade Federal de Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA).
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