Sem triunfalismo, sine ira et studio, são
fartas as indicações que o projeto original do governo que aí está já caiu por
terra, à vista de todos os despojos que foi deixando atrás de si, como os
nefastos Ernesto Araújo, Ricardo Salles, Eduardo Pazzuelo e tantos outros
abandonados à sua má sorte. Tal projeto se aplicava no intento de remover a
Carta constitucional de 1988, especialmente seu sistema de freios e contrapesos
na regulação do poder político e de cancelar as suas disposições em matéria de
proteção social e ambiental, em suma impor ao país uma anacrônica modelagem de
capitalismo vitoriano, afinada à época com a orientação neoliberal de Donald
Trump que pretendia universalizá-la a partir da posição de força que lhe
conferia a presidência dos EEUU.
Vários fatores contribuíram, cada qual com seu peso específico, para minar tais propósitos, a resistência das instituições, escorada por uma imprensa altiva, a pandemia, ao expor a nu a incapacidade das hostes governistas em combater disseminação do vírus que flagelava a população, em particular os mais vulneráveis, e a vitória de Joe Biden nas eleições americanas, retirando do governo Bolsonaro seu arrimo nas relações internacionais. Tudo isso junto e misturado, mais a emergência dos protestos populares, cada vez mais massivos, atua no sentido de levar às cordas os governistas, que retrucam com ousados movimentos de defesa, exemplar na nomeação de prócer do Centrão como ministro-chefe da Casa Civil.
Sobraria como último recurso o caminho do
golpe militar na esteira da estratégia trumpista de melar o processo eleitoral com
a introdução do voto por cédula de fácil manipulação nas condições brasileiras.
O voto eletrônico seria letal, nas circunstâncias presentes de curvas
declinantes nas pesquisas de opinião pública, para o governo Bolsonaro. Mas o
golpe, embora possível, pelo seus custos e riscos, nacionais e internacionais,
não pode prescindir de um Bonaparte e não se divisa por aí ninguém que se
aproxime desse perfil, que certamente não é o de Bolsonaro.
Sem remédios heroicos disponíveis, restaram
então as mezinhas caseiras arquiconhecidas em nossas plagas na forma de uma
coligação dos Farialimers com o Centrão, assumindo a alternativa de procurar a
vitória nas urnas, na expectativa de que seus rivais se estiolem em lutas
fratricidas, como lhes é comum, e de que o poder do dinheiro faça mais uma das
façanhas nas campanhas eleitorais. No caso, não estaria sozinha na medida em
que contaria com os apoios que ainda lhe sobram da última sucessão presidencial
como o dos cultos evangélicos beneficiários dos seus favores, a que se somariam
os frutos do seu aliciamento promovido pelo governo dos aparelhos policiais e
mais essa nova ralé de setores de camadas médias que lhe tem sido fiel, para
não falar das milícias urbanas estimuladas pelo tipo de política que pratica.
Essa malha pestilencial opera com a clara intenção de envolver setores das
forças armadas aos seus designíos, tal como se revela na política de cooptação
dos seus quadros em curso.
Esse cenário, ainda especulativo, tem tudo
para se converter em real. Na verdade, ele é mais o resultado imprevisto das
resistências da sociedade em travar os ímpetos autoritários do governo
Bolsonaro do que do plano que cultivava à sombra, aplicado ao derruimento
sorrateiro das instituições democráticas. Embargada a fúria do processo de
destruição em que se empenhava, Bolsonaro descobre as amplas possiblidades
contidas no Brasil profundo, valhacouto do patrimonialismo, herdeiro natural
das patologias da nossa formação de plantations escravocratas.
A entronização do Centrão pelas mãos dos
que se apresentavam como seus inimigos figadais se, em parte, significa capitulação,
de outro lado pode importar na invenção de caminho promissor para as forças
retardatárias do capitalismo brasileiro que se livrariam dos riscos de
extinção, convertendo-se pelas mãos do Estado, em novos parceiros de sua
expansão. Para as forças democráticas, agora em que o impeachment se reduziu a
uma hipótese de laboratório, toda a atenção deve estar voltada em impedir a
legitimação pelo voto dessa coalizão reacionária.
O processo de democratização que levou a
conquista da Carta de 1988 foi fruto não só das lutas populares e democráticas,
mas também de compromissos – não houve, como se sabe, uma ruptura na passagem
para o retorno à democracia, que se realizou pela via de uma solução negociada,
evidente em questões cruciais como a agrária e a militar, esta última intocada
e à margem das inovações introduzidas pelo poder constituinte.
Nas eleições que se avizinham, nessas novas
circunstâncias de alianças do bolsonarismo com o Centrão barrar seu caminho de
reprodução traz a oportunidade para o ator democrático varrer o entulho
autoritário ao mesmo tempo em que arremessa para fora do caminho da nossa
sociedade os restos do que ainda sobrevive das piores tradições do
patrimonialismo em nossa formação. O rumo está dado, cabe-nos agora erguer o
ator coletivo a fim de cumprir essa missão.
*Luiz Werneck Vianna, Sociólogo, PUC-Rio
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