sexta-feira, 16 de julho de 2021

Flávia Oliveira - As pessoas no centro

O Globo

Passaporte para o retorno à vida de encontros (de rua) que forjou o povo carioca, a vacinação avança como luz no fim de longo túnel de doença, tristeza, isolamento. O ambiente enlutado há de dar lugar à esperança de vida que a população alimenta, necessita, merece. O desejo é de retomada, não de retorno a um modelo de convivência que, até aqui, plantou desigualdade e colheu injustiça. Aqui vão linhas de cobrança antecipada do compromisso que a prefeitura firmou com os moradores da cidade na apresentação, ontem, de um plano de investimentos que, entupido de números, não pode negligenciar as pessoas. São elas que devem estar no centro — e também no Centro, hoje em reabilitação como espaço de moradia.

Eduardo Paes foi o prefeito de projetos ambiciosos e obras monumentais que, no período de abundância que antecedeu os megaeventos, Olimpíada à frente, impressionaram as massas, mas não produziram bem-estar. Quatro anos de Marcelo Crivella, pandemia na popa, fizeram o eleitorado reatar com o ex. Sob novo contrato. Guardadas as proporções, expectativas semelhantes catapultaram Joe Biden e Kamala Harris à Casa Branca, nos Estados Unidos. O combinado é sepultar o passado e acenar a um futuro diferente, de prosperidade partilhada. É equidade que chama.

Três meses atrás, o presidente americano apresentou dois ambiciosos planos de investimentos: um orientado a infraestrutura e sustentabilidade; outro, de atenção às famílias, com ênfase em transferência de renda aos mais pobres, ampliação do acesso dos miúdos à creche e dos jovens à qualificação profissional. O American Families Plan soma US$ 1,8 trilhão, mais que o PIB brasileiro inteiro no ano passado. “É um plano que tem as famílias e a comunidade como espaços da redistribuição de renda. Tem tudo a ver com economia do cuidado e com a unificação prometida na campanha Biden-Kamala”, comentou a economista Monica De Bolle, professora na Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos.

Ontem, contou Ronilso Pacheco, teólogo brasileiro, pesquisador e mestrando na Universidade Columbia (Nova York), foi paga a primeira leva do apoio financeiro às famílias com menores de 18 anos — serão US$ 300 por meninos e meninas de até 6 anos, e US$ 250 de até 17. A Casa Branca informou que já depositou US$ 15 bilhões para 60 milhões de crianças e adolescentes. As escolas estão recebendo US$ 129 bilhões em estímulos.

No Rio, o plano anunciado por Paes e pelo secretário Pedro Paulo, da Fazenda, prevê R$ 13,9 bilhões em investimentos até 2024, 70% dos quais destinados às zonas Norte e Oeste, tão populosas quanto carentes de equipamentos e serviços públicos. O município elencou 235 projetos em 93 metas, entre as quais estender a 70% da população o programa Saúde da Família, reduzir o desemprego de 14,7% para 8%, ter metade dos alunos da rede municipal em horário integral, diminuir em 50% o total de cariocas abaixo da linha da pobreza. Tudo isso com a promessa de reduzir desigualdades de gênero e raça, incluir jovens e pessoas com deficiência.

É comum políticas sociais serem encaradas mais como gasto, menos como investimento. Um erro. Programas de atenção à saúde, acesso e qualidade na educação geram economia de recursos e desenvolvimento de longo prazo. Relatório recente da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias (Conitec), que assessora o Ministério da Saúde no SUS, estimou que vacinar a população contra a Covid-19 poderá trazer economia de R$ 150 bilhões aos cofres públicos em meia década. É dinheiro que, para começar, não será gasto com internações e exames.

Da mesma forma, universalizar o acesso à creche e combater a evasão escolar de adolescentes e jovens melhora capital humano e produtividade da economia.

— Algo seguro a dizer é que os ganhos econômicos no longo prazo com educação serão máximos com a focalização da ajuda justamente nos que estão na parte de baixo da pirâmide de renda — disse o economista Otaviano Canuto, ex-Banco Mundial, BID e FMI, hoje diretor do Center for Macroeconomics and Development, em Washington.

Programas bem desenhados de transferência de renda estimulam a atividade econômica, porque fazem a roda do consumo girar. No ano passado o PIB recuou metade do previsto na esteira do auxílio emergencial, que chegou a 68 milhões de pessoas. A suspensão do programa, no primeiro trimestre de 2021, devolveu à pobreza porção numerosa da população e empurrou 19 milhões para a fome. Investimentos robustos em educação e saúde têm impacto também na desigualdade de gênero. De um lado, mulheres são a maior parte da mão de obra nas duas áreas; de outro, família saudável e criança na escola liberam as mães para o trabalho remunerado, sinônimo de maior renda familiar. É a materialização do ganha-ganha. Que venha.

 

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