Folha de S. Paulo
Não facultarei a canalhas instrumentos da
democracia para que solapem o regime
Deixo aqui um recado a militares que
eventualmente se vejam tentados a manter comigo uma conversa ao pé do ouvido.
Não contem com esta coluna, com o blog que mantenho no UOL ou com o programa
diário de rádio O É da Coisa, que ancoro na BandNews FM, para ameaçar o
processo eleitoral e para fazer a apologia do golpe.
Poderão dizer os golpistas: "E quem precisa de você, Reinaldo? Já temos tantos e tantas para mandar nossos recados. Pare de regular mixaria!". Sou assim mesmo. Tenho esse lado que alguns hão de considerar meio mixuruca, sabem? Não torno disponível a gente que não presta mesmo as pequenas dimensões do meu quintal. Pela minha cerca, não passarão.
Se houver general,
brigadeiro ou almirante da ativa —se for de pijama, topo jogar dominó,
mas em horários restritos porque preciso trabalhar; não terei pensão integral,
a um déficit multibilionário— que estejam dispostos a pregar
abertamente o golpe, com invasão do Congresso e do Supremo, prisão dos
parlamentares de oposição e dos ministros independentes do Supremo, fechamento
dos veículos de comunicação que não sejam terraplanistas e passopanistas... Em
os havendo, publico. Mas com nome e endereço. Porque, no mesmo texto, vou
defender que sejam presos.
"Ah, é? E quem vai prender?" Pois
é, estará lançada a questão. Sei que não servirei de instrumento dos que
pretendem dar um golpe branco. Não facultarei a canalhas os instrumentos de que
dispõe a democracia —e a imprensa livre é um deles— para que solapem o próprio
regime que lhes garante a fala em off. Não servirei de esbirro de golpistas.
Que diferença há entre dar voz a militares
sem rosto que ameaçam o processo eleitoral e publicar offs do PCC, do
Comando Vermelho, das milícias ou de grupos terroristas que decidissem deixar
claro à sociedade quais são as suas reivindicações? Quem quer que falasse com
esses para revelar artimanhas do mundo criminoso e para denunciar outros bandidos,
bem, então o off é não só o caminho aceitável como pode ser o desejável. Desde,
é claro, que a publicação fosse precedida da apuração para verificar a
veracidade do que dissessem.
Mas seria um erro grotesco —e, portanto,
associar-se ao crime— manter uma conversa ao pé do ouvido com marginais,
fardados ou não, que decidissem usar o jornalismo para veicular ameaças ou
reivindicações da "categoria". O procedimento acaba por constituir um
dos instrumentos de uma espécie de normalização do crime, como se este pudesse
fazer parte da nossa rotina e como se, prestem atenção à expressão, no dia
seguinte, houvesse amanhãs.
Havendo general que queira dizer em off ou
em on que essa conversa de golpe é bobagem, aí podem contar comigo. Pronto!
Revelo aqui: dois grandões, com tropas, me dizem que isso tudo não passa de
besteira. Se há quem não tenha entendido por que uma coisa é legítima, e a
outra não, bem, dizer o quê? Então não entendeu nada e seria inútil explicar.
Meu tempo e meu espaço são escassos.
E tanto pior quando essa conversa mole não
vem exatamente associada à derrota de Bolsonaro, mas à eventual vitória de
Lula. Quase se pode ouvir, nas entrelinhas, um lamento surdo: "Fosse a
terceira via...". Em certos casos, a dita-cuja vem com nome e sobrenome:
"Fosse Sergio Moro". Um pouco mais de pudor, por favor!
Quanto a Bolsonaro e seu entorno,
considere-se: ninguém por ali bate bem dos pinos, mas há método. A foto
divulgada nas redes do herói moribundo, mas com ar beatífico, como triunfo do
martírio, é uma cola plástica do "Cristo Morto", de Mantegna
(1431-1506). Peço à edição da Folha que
reproduza lado a lado as duas imagens. Vejam ali o crucifixo de Dom Fernando
José Monteiro Guimarães, arcebispo do Ordinariado Militar do Brasil, a abençoar
o "Mito".
Segundo a crença, Cristo morreu na cruz para nos salvar. Bolsonaro escolheu uma política de saúde que já fez quase 540 mil mártires "sem ar, sem luz, sem razão". E o fez para se salvar. Porque atendia à demanda dos que apoiaram a sua postulação quando ainda era um azarão. Deu o azarão. O urubu pousou na nossa sorte, e o resultado se mede em corpos. Que pesam sobre os ombros dos golpistas.
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