segunda-feira, 16 de agosto de 2021

Bruno Carazza* - Extorsão e traição

Valor Econômico

Distritão é a mais explícita chantagem, cujo preço sobe a cada ciclo eleitoral

A cada dois anos, um fantasma toma de assalto o Congresso Nacional e drena todas as atenções e energias: o distritão. Para evitar essa degeneração ainda maior de nosso sistema político, muito já se abriu mão, de aumentos bilionários nos fundos partidário e eleitoral ao enfraquecimento dos mecanismos de transparência partidária.

Nós, brasileiros, adoramos um eufemismo, e no caso do distritão o rotulamos de “bode na sala”. Mas passou da hora de darmos o nome certo às coisas: trata-se da mais explícita chantagem, cujo preço sobe a cada ciclo eleitoral. Neste ano, a extorsão atingiu seu ápice com as tentativas de aumentar o fundão para quase R$ 6 bilhões e a volta das coligações.

Em 2017, após uma sequência de crises e num raro momento de lucidez, o Congresso Nacional aprovou duas medidas voltadas para o saneamento de nosso caótico sistema político. A Emenda Constitucional nº 97/2017 não era uma bala de prata para resolver todos os vícios de nossa política, mas tentava induzir uma consolidação do quadro partidário, pulverizado em dezenas de partidos.

E fazia isso de duas formas: de um lado, limitava a festa de distribuição do fundo partidário e do horário eleitoral gratuito apenas para legendas que demonstrassem um certo patamar de representatividade eleitoral; de outro, proibia os partidos de pegarem carona uns com os outros nas eleições para vereadores e deputados estaduais e federais - as chamadas coligações.

Com essas duas medidas, a vida dos partidos nanicos e das legendas de aluguel seria bastante prejudicada, o que geraria um forte incentivo para que eles se fundissem com outros maiores. Com um cronograma gradativo de implantação, o plano era iniciarmos a década de 2030 com o país um pouco mais governável, minimamente parecido com o que se verifica no resto do mundo.

Essa combinação de cláusula de desempenho e fim das coligações seria testada nacionalmente pela primeira vez no ano que vem. Mas, se o Senado sacramentar o amplo acordo que foi celebrado na Câmara na noite da quarta-feira (11/08), corremos o risco de voltar à estaca zero.

Numa votação confusa, convocada sem aviso prévio, e após um acordo celebrado a toque de caixa, decidiu-se pelo retorno das coligações, em troca do arquivamento da proposta do distritão. Esse retrocesso só foi possível graças a três grupos principais, cada qual com seu objetivo.

Os maiores interessados, obviamente, eram os partidos pequenos. Vale a pena dar números concretos ao que está em jogo: quem sobreviveu à cláusula de barreira em 2018 recebe hoje em torno de R$ 1,5 milhão por mês de fundo partidário, contando com isenção tributária e ampla liberdade para gastar. Há ainda o horário no rádio e na TV, que se converte em ativo valioso em negociações quase nunca republicanas com as siglas maiores caso as coligações voltem a ser permitidas.

Não por acaso, a manobra foi liderada pelo presidente da comissão de reforma eleitoral, o deputado Luiz Tibé (Avante-MG), e pela relatora, Renata Abreu (Podemos-SP), ambos conhecidos por serem “donos” de legendas ameaçadas pelo sarrafo mais alto da cláusula de desempenho no ano que vem.

Mas existiram outros sócios na jogada. O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), novamente manobrou como um trator e antecipou a votação da PEC para a noite de quarta-feira. Ao pegar a todos de surpresa, Lira alimentou um pânico de que a aprovação do distritão era iminente, aumentando a pressão para que se fechasse o acordo pela volta das coligações.

O cálculo de Lira é simples: caso aprovada, em 2022 o Centrão poderá se associar a Bolsonaro em alguns Estados e subir no palanque com Lula ou ainda com algum terceiro candidato, se ele for viável, em outros. É uma estratégia ganha-ganha: independentemente de quem vencer, o Centrão entrará 2023 já sendo credor do próximo governo.

Mas o amplo acordo pela volta das coligações não teria sido possível sem a decisiva contribuição do PT. Contrariando seu discurso histórico contrário a esse anacronismo, as lideranças petistas justificaram seu posicionamento afirmando que era necessário combater o “mal maior”, o distritão. As evidências sugerem que não era bem assim.

A tentativa de passar o distritão era um PEC. Para derrubá-la, bastam 206 votos na Câmara. A oposição tem em torno de 130 membros. Faltariam, portanto, em torno de 70 a 80 votos, no máximo, para derrubar a proposta, sem precisar ceder nada em troca. Essa ajuda poderia vir de vários partidos de centro e direita que eram manifestamente contra o distritão, como PSD, Novo e parcelas significativas do MDB, PSDB, DEM, entre outros.

E por que isso não foi feito? Existem duas hipóteses. Pode ter sido um erro de estratégia do PT, que no calor da votação no plenário acreditou que o distritão passaria. Como um partido experiente como o PT não costuma cometer esse tipo de leitura equivocada da situação, parece mais plausível acreditar que foi um movimento pensado.

A decisão do PT passou por cima não apenas de seu posicionamento já consagrado, mas contrariou também parceiros tradicionais, como PDT, Cidadania, PSOL, Rede e PV - todos contrários às coligações. Também chamou a atenção a rapidez da negociação com os partidos nanicos e o Centrão: entre a abertura da sessão e o anúncio do líder da oposição, Alessandro Molon (PSB-RJ), de que havia possibilidade de acordo, transcorreram-se apenas 52 minutos; prazo muito exíguo em votações importantes como essa.

Apesar da ampla vantagem de Lula nas pesquisas, seu partido sabe que a campanha do ano que vem será sangrenta. Quando chegar a hora, o petista terá que se expor mais, sendo cobrado por assuntos espinhosos como mensalão, petrolão e a crise econômica no governo Dilma. Como o seguro morreu de velho, todo tipo de apoio será bem-vindo, até mesmo do Centrão. Nesse contexto, o retorno das coligações pode vir a calhar.

Na mesma semana em que vimos o PSDB se posicionar em peso com Bolsonaro pelo voto impresso, observamos também o PT renegar suas tradições em favor da fragmentação política e dos partidos de aluguel. No mundo real da política, o interesse próprio e a visão de curto prazo vêm sempre em primeiro lugar.

*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”. 

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