Valor Econômico
Distritão é a mais explícita chantagem,
cujo preço sobe a cada ciclo eleitoral
A cada dois anos, um fantasma toma de
assalto o Congresso Nacional e drena todas as atenções e energias: o distritão.
Para evitar essa degeneração ainda maior de nosso sistema político, muito já se
abriu mão, de aumentos bilionários nos fundos partidário e eleitoral ao
enfraquecimento dos mecanismos de transparência partidária.
Nós, brasileiros, adoramos um eufemismo, e no caso do distritão o rotulamos de “bode na sala”. Mas passou da hora de darmos o nome certo às coisas: trata-se da mais explícita chantagem, cujo preço sobe a cada ciclo eleitoral. Neste ano, a extorsão atingiu seu ápice com as tentativas de aumentar o fundão para quase R$ 6 bilhões e a volta das coligações.
Em 2017, após uma sequência de crises e num
raro momento de lucidez, o Congresso Nacional aprovou duas medidas voltadas
para o saneamento de nosso caótico sistema político. A Emenda Constitucional nº
97/2017 não era uma bala de prata para resolver todos os vícios de nossa
política, mas tentava induzir uma consolidação do quadro partidário,
pulverizado em dezenas de partidos.
E fazia isso de duas formas: de um lado,
limitava a festa de distribuição do fundo partidário e do horário eleitoral
gratuito apenas para legendas que demonstrassem um certo patamar de
representatividade eleitoral; de outro, proibia os partidos de pegarem carona
uns com os outros nas eleições para vereadores e deputados estaduais e federais
- as chamadas coligações.
Com essas duas medidas, a vida dos partidos
nanicos e das legendas de aluguel seria bastante prejudicada, o que geraria um
forte incentivo para que eles se fundissem com outros maiores. Com um
cronograma gradativo de implantação, o plano era iniciarmos a década de 2030
com o país um pouco mais governável, minimamente parecido com o que se verifica
no resto do mundo.
Essa combinação de cláusula de desempenho e
fim das coligações seria testada nacionalmente pela primeira vez no ano que
vem. Mas, se o Senado sacramentar o amplo acordo que foi celebrado na Câmara na
noite da quarta-feira (11/08), corremos o risco de voltar à estaca zero.
Numa votação confusa, convocada sem aviso
prévio, e após um acordo celebrado a toque de caixa, decidiu-se pelo retorno
das coligações, em troca do arquivamento da proposta do distritão. Esse
retrocesso só foi possível graças a três grupos principais, cada qual com seu
objetivo.
Os maiores interessados, obviamente, eram
os partidos pequenos. Vale a pena dar números concretos ao que está em jogo:
quem sobreviveu à cláusula de barreira em 2018 recebe hoje em torno de R$ 1,5
milhão por mês de fundo partidário, contando com isenção tributária e ampla
liberdade para gastar. Há ainda o horário no rádio e na TV, que se converte em
ativo valioso em negociações quase nunca republicanas com as siglas maiores
caso as coligações voltem a ser permitidas.
Não por acaso, a manobra foi liderada pelo
presidente da comissão de reforma eleitoral, o deputado Luiz Tibé (Avante-MG),
e pela relatora, Renata Abreu (Podemos-SP), ambos conhecidos por serem “donos”
de legendas ameaçadas pelo sarrafo mais alto da cláusula de desempenho no ano
que vem.
Mas existiram outros sócios na jogada. O
presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), novamente manobrou como um trator e
antecipou a votação da PEC para a noite de quarta-feira. Ao pegar a todos de
surpresa, Lira alimentou um pânico de que a aprovação do distritão era
iminente, aumentando a pressão para que se fechasse o acordo pela volta das
coligações.
O cálculo de Lira é simples: caso aprovada,
em 2022 o Centrão poderá se associar a Bolsonaro em alguns Estados e subir no
palanque com Lula ou ainda com algum terceiro candidato, se ele for viável, em
outros. É uma estratégia ganha-ganha: independentemente de quem vencer, o
Centrão entrará 2023 já sendo credor do próximo governo.
Mas o amplo acordo pela volta das
coligações não teria sido possível sem a decisiva contribuição do PT.
Contrariando seu discurso histórico contrário a esse anacronismo, as lideranças
petistas justificaram seu posicionamento afirmando que era necessário combater
o “mal maior”, o distritão. As evidências sugerem que não era bem assim.
A tentativa de passar o distritão era um
PEC. Para derrubá-la, bastam 206 votos na Câmara. A oposição tem em torno de
130 membros. Faltariam, portanto, em torno de 70 a 80 votos, no máximo, para
derrubar a proposta, sem precisar ceder nada em troca. Essa ajuda poderia vir
de vários partidos de centro e direita que eram manifestamente contra o
distritão, como PSD, Novo e parcelas significativas do MDB, PSDB, DEM, entre
outros.
E por que isso não foi feito? Existem duas
hipóteses. Pode ter sido um erro de estratégia do PT, que no calor da votação
no plenário acreditou que o distritão passaria. Como um partido experiente como
o PT não costuma cometer esse tipo de leitura equivocada da situação, parece
mais plausível acreditar que foi um movimento pensado.
A decisão do PT passou por cima não apenas
de seu posicionamento já consagrado, mas contrariou também parceiros
tradicionais, como PDT, Cidadania, PSOL, Rede e PV - todos contrários às
coligações. Também chamou a atenção a rapidez da negociação com os partidos
nanicos e o Centrão: entre a abertura da sessão e o anúncio do líder da
oposição, Alessandro Molon (PSB-RJ), de que havia possibilidade de acordo,
transcorreram-se apenas 52 minutos; prazo muito exíguo em votações importantes
como essa.
Apesar da ampla vantagem de Lula nas
pesquisas, seu partido sabe que a campanha do ano que vem será sangrenta.
Quando chegar a hora, o petista terá que se expor mais, sendo cobrado por
assuntos espinhosos como mensalão, petrolão e a crise econômica no governo
Dilma. Como o seguro morreu de velho, todo tipo de apoio será bem-vindo, até
mesmo do Centrão. Nesse contexto, o retorno das coligações pode vir a calhar.
Na mesma semana em que vimos o PSDB se
posicionar em peso com Bolsonaro pelo voto impresso, observamos também o PT
renegar suas tradições em favor da fragmentação política e dos partidos de
aluguel. No mundo real da política, o interesse próprio e a visão de curto
prazo vêm sempre em primeiro lugar.
*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.
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