Decisão do governo Bolsonaro de deixar fórum regional e ausência de articulações amplas em temas como a pandemia e o clima deixam os latino-americanos sem voz global, afirma líder ao GLOBO
Janaína
Figueiredo / O Globo
Os chefes de
Estado da América Latina estão em falta em matéria de esforços pela integração
regional. O recado foi dado pelo ex-presidente do Chile Ricardo Lagos
(2000-2006) em entrevista ao GLOBO, na qual lamentou que a região esteja mais
desintegrada do que nunca e, em consequência, excluída de grandes debates
globais. “Precisamos ter uma voz comum para sermos escutados, e não estamos
fazendo as coisas bem”, disse Lagos, que frisou o impacto negativo para as
articulações regionais da saída
do Brasil da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac),
anunciada pelo governo do presidente Jair Bolsonaro em janeiro de 2020. Aos 83
anos, o ex-presidente, do Partido Socialista, elogiou o processo de mudanças
políticas em seu país e disse esperar que o Chile passe a ter “uma Constituição
adequada às necessidades de hoje”.
Em artigo recente, o senhor fala em carência
de uma política externa regional e menciona a ausência do Brasil da Celac...
A região nunca esteve mais desintegrada do que está hoje. É difícil pensar, olhando para trás, em que momento tivemos a dificuldade que temos hoje de nos expressarmos conjuntamente sobre temas comuns. A pandemia é a terceira grande crise do século XXI. A primeira foi a desencadeada pelo atentado às Torres Gêmeas e suas consequências. Sabíamos onde devíamos discutir, no Conselho de Segurança das Nações Unidas. A segunda foi a crise financeira de 2008, e naquele momento houve uma resposta. O presidente George W. Bush convidou chefes de Estado a Washington e nasceu o G-20, lá estavam Brasil, México e Argentina. A região entendeu que, se teríamos reuniões presidenciais ou de ministros da Fazenda, devíamos ter reuniões prévias entre os latino-americanos para que esses três países fossem uma espécie de representação da região. Era natural, conversávamos entre nós. Quando falamos de política externa, estamos falando dos interesses concretos de cada país. É preciso coordenar os interesses de cada país e ter consensos na região.
A ausência do Brasil da Celac e em algumas
articulações regionais, por exemplo entre Argentina e México, têm impacto na
região?
Para ser franco,
sem o Brasil, ou sem o México, a América Latina dificilmente existe. É claro,
[a ausência do Brasil da Celac] afeta muito. Diante desta crise, da pandemia,
não existe um lugar onde discutir. Cada governante resolveu sozinho como
conseguir respiradores, vacinas, nos
acostumamos a que os países façam política com suas vacinas, a
diplomacia das vacinas. Juntos poderíamos encontrar caminhos, mas não há
iniciativas.
A América Latina está ficando à margem de de
debates globais?
É evidente. Hoje,
alguns problemas excedem a soberania de cada país. Quando ninguém menos que Joe
Biden defende a criação de um tributo sobre grandes empresas supranacionais,
como a América Latina não reage e participa, em conjunto, dessa discussão? Na
última reunião de ministros da Economia do G-20, foi acordado um encontro em
outubro para tomar a decisão final. Estão discutindo se a alíquota será de 15%
ou 25%. Caramba, deveríamos estar participando dessa discussão.
A União de Nações Sul-Americanas (Unasul) foi
desarticulada e o Fórum para o Progresso e Desenvolvimento da América do Sul
(Prosul) não tem relevância. O que existem hoje são subgrupos, por exemplo
entre Brasil e Colômbia ou entre Argentina e México...
Mais do que
subgrupos, eu falaria em coincidências ideológicas. Mas, em política externa, o
que existem são interesses de países. O multilateralismo obriga a ter certas
normas gerais. O que convém à América Latina é ter uma só voz em matéria de
vacinas ou medidas de combate à pandemia. O que não é possível é dizer que a
Unasul é para os esquerdistas e o outro grupo é mais para a direita. Assim não
se faz política externa. Precisamos ter uma voz comum para sermos escutados. Se
queremos ser ouvidos pelo resto do mundo, temos de aprender a nos ouvirmos
entre nós. Os governantes da América Latina, nesse aspecto, estão em falta.
Em suas redes sociais, o senhor elogiou uma
recente reunião entre os ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio
Lula da Silva. Por quê?
Fui presidente e
convivi com Cardoso e com Lula. Me pareceu, que frente à situação do Brasil,
que está fora de tudo pelas atuações do presidente Bolsonaro, era importante
que esses dois líderes democratas tivessem esse gesto pelo bem do Brasil. Foi
um bom exemplo para a América Latina. Esta crise foi muito profunda, evidenciou
nossas fraquezas, a enorme desigualdade. Também temos questões importantes como
as mudanças climáticas, o grande desafio do século XXI. Diante desses desafios,
podemos ter um olhar comum? Isso não tem a ver com esquerdas e direitas, tem a
ver com a maneira de nos aproximarmos dessa realidade. Mas cada um está vendo
como resolver sozinho, e assim não seremos ouvidos. No mundo global, pesam os
grandes blocos. O exemplo da União Africana é relevante, ou da União Europeia.
O cenário está mudando, os EUA estão retornando com força e encontrando um
mundo diferente, com uma China mais empoderada. O que faz a América Latina,
entre EUA e China? Hoje, em boa parte de nossos países, a China é o sócio
comercial número um ou quase.
A visita do conselheiro de Segurança Nacional
da Casa Branca, Jake Sullivan, a Brasil e Argentina evidenciou a preocupação
dos EUA com a presença chinesa, mas, até agora, a agenda de Biden para a
América Latina foi pobre...
[A região] não
aparece entre as prioridades. Há uma pequena inquietação pela América Central,
relacionada a questões de imigração, temas de política interna. Existe uma falência
de Biden em relação à América Latina.
Existem alertas sobre a democracia na
Nicarágua, na Venezuela, e até mesmo o Brasil hoje é mencionado como
preocupação nesse sentido. O senhor está preocupado com a democracia na região?
Tínhamos dado
grandes passos em matéria de democracia na região. Agora temos algumas
dificuldades. A crise do coronavírus desencadeou demandas sociais muito
importantes, e há dificuldades para satisfazê-las. Ao mesmo tempo, estamos numa
revolução ainda maior, passamos de uma revolução industrial à revolução
digital, que muda todos os parâmetros. O desafio é nos adaptarmos. As pessoas
falam todos os dias através das redes sociais. A perda de confiança nas
instituições democráticas preocupa. Como se faz, então, para aprender a ouvir e
responder?
A revolução digital ajuda a explicar a eleição
de tantos independentes para a Convenção Constitucional chilena?
Esse grupo se
formou através do WhatsApp, se coordenou assim. Mas, veja, na mesma eleição dos
constituintes, também foram eleitos prefeitos e vereadores. E, nesse último
caso, venceram os partidos tradicionais do Chile. Depois, nas
primárias [para a escolha dos candidatos à Presidência da esquerda e da
direita], venceram os candidatos mais próximos do centro, e isso também
fala sobre como é o país.
Qual é sua expectativa sobre este novo Chile?
Estamos introduzindo instituições novas. Na Convenção, temos igual número de mulheres e homens. É algo inédito no mundo e melhora a qualidade dos parlamentos, é um olhar diferente. Quero pensar que teremos uma Constituição adequada às necessidades que o país tem hoje e acho que aprendemos muito.
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