“Dar palmada é crime, ignorância e covardia” (Ruth de Aquino)
Conversando com uma jovem de 22 anos, mãe
de sua primeira filha de um ano e seis meses, de repente ela retirou a sandália
do pé e bateu na mão da criança, porque a menina encontrou no botão do fogão,
um objeto para brincadeira e conhecimento. Tomei um susto. Fui veemente na
reprovação ao ato. A criança chorou… a mãe disse que batia para que a criança
não lhe bata na cara quando estiver adulta…
Na verdade, um ato corriqueiro praticado
por muitas mães – a maioria que cuida -, mas que pode trazer problemas
irreversíveis para a criança durante sua vida. Pode trazer também problemas
para a mãe, tão jovem, com relação ao seu desenvolvimento psicológico na
relação com a educação e o cuidado com sua filha e consigo própria.
Durante a pandemia aumentaram as agressões
às crianças e aos adolescentes em nosso país. É o que falam especialistas e
órgãos que monitoram a violência doméstica. No entanto, sabe-se também que
existe um problema grave de subnotificação com relação a essa questão.
Especialistas como pediatras, psicólogos, professores e outros, sabem que uma
criança que sofre agressão pode conviver com o medo, se apresentar introvertida
e manifestar vários tipos de problemas que repercutem em seu organismo pela
vida inteira. A pior delas é o trauma psíquico.
Segundo Paulo Endo, psicanalista e professor, os casos de violência podem deixar resultados traumáticos e profundas feridas psíquicas e que “custam muito para chegar a uma atenuação, resultando, então, na impossibilidade de cuidar de si, da própria vida, de estabelecer relações com seu futuro, comprometendo o desejo de viver”. (Jornal da USP).
As agressões geralmente partem dos
familiares e pessoas mais próximas, com as quais as crianças e adolescentes
mantêm uma relação que deveria ser de proteção e segurança, como tem sido
confirmado através de denúncias investigadas pelos órgãos de segurança.
Em entrevista ao Jornal da USP a médica
pediatra e coordenadora do Grupo de Atendimento à Violência Infantojuvenil do
Instituto da Criança do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP,
Juliana Martins Monteiro, afirma que entre as agressões, “estão a violência
física, violência sexual, violência psicológica, a negligência, o bullying e o
cyberbullying… excepcionalmente, a criança chega aos serviços de saúde com
queixa de violência. Podemos suspeitar dela por meio dos sinais, físicos ou
não, pelo olhar e escuta atenta, já que a criança pode se mostrar com medo,
muito introvertida ou com alterações no comportamento”.
Especialistas têm expressado suas
preocupações com o avanço deste tipo de violência durante a pandemia, que pode
ser provocada pelo isolamento proposto à sociedade para combater a doença, pela
vulnerabilidade familiar aguçada pelo desemprego, pela violência doméstica
preestabelecida e pelo sentimento de poder sobre os filhos.
Muitas pessoas têm manifestado o pensamento
de que é impossível educar uma criança sem praticar e até se exceder nas
palmadas, e, assim, talvez reproduzam já uma situação vivenciada na sua
infância e nem se dão conta que problemas vivenciados como adultos podem ser
resultantes de prática agressiva imposta pelos adultos, inclusive os pais,
quando criança.
Nem se dão conta de que bater, agredir,
violentar uma criança é crime. A lei “Menino Bernardo”, apelidada de lei da
Palmada, sancionada em junho de 2014, alterou o Estatuto da Criança para
disciplinar o direito de se educar as crianças e os adolescentes sem o uso de
castigos físicos, como se tornara corriqueiro na nossa sociedade.
Após a alteração do ECA as famílias que
praticarem agressões contra seus filhos poderão ser encaminhadas para programas
de orientação educacional, acompanhadas por serviços psíquicos e pedagógicos e
até poderão sofrer advertência ou investigações processuais, em casos de
agressões mais violentas.
Crianças pequeninas que sofrem violência
nem conseguem compreender a lógica da força praticada porque não fazem a
relação desta prática com o ato de obediência. O diálogo, a conversa, a
compreensão, a atenção e o conhecimento têm demonstrado ser os métodos e
instrumentos capazes e principais para dar consistência a uma convivência
pacífica, sadia, e promover a formação multidimensional dos seres humanos em
processos educativos.
É necessário paciência, persistência e
convicção.
A violência, quando praticada pelos pais se
reveste de complexidade maior porque os filhos, enquanto crianças, necessitam
do carinho, da proteção, da segurança dos pais, sendo os mesmos a primeira
grande referência de amor e sustentabilidade para seus filhos.
Como pode crescer uma criança numa família
que se alterna entre amor, carinho e agressões aos seus filhos? A criança deve
se indagar, quanto à sua capacidade de abstrair alguns sentimentos em
detrimento de outros, ou seja, “quando devo amar, o que devo fazer”? Ou,“o que
devo fazer para não apanhar ou quando apanho”?
O que esperamos quando cuidamos ou educamos
é, sempre, desenvolver na criança a sua capacidade de pensar, raciocinar e
decidir, assim preparando o longo caminho de sua caminhada na vida.
A família com a qual a criança vive,
especialmente a mãe, o pai, os avós são o espaço privilegiado para o
desenvolvimento físico, mental e psicológico dos que ali habitam. No entanto, é
preciso desvendar o que acontece nas relações que se estabelecem e denunciar às
autoridades quando houver violência doméstica.
Pais que batem nos seus filhos geralmente contam com a aquiescência dos outros membros da família, porque têm a compreensão ainda medieval que o medo impulsiona a obediência e o aprendizado para a vida.
“É importante enfatizar, como fazem Azevedo
e Guerra (1998, p.25) que “toda a ação que causa dor física numa criança ou
adolescente, desde um simples tapa até o espancamento fatal, representam um
só continuum de violência. Sendo assim, torna-se necessário defender
o direito constitucional de que crianças e adolescentes têm de estar salvas de
toda forma de violência, crueldade e opressão para que tenham uma vida digna,
enquanto pessoas em situação peculiar de desenvolvimento e enquanto seres
humanos”. (in O Impacto da Violência Doméstica…Fabiane e Maria Inês)
*Mirtes Cordeiro é pedagoga.
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