O Globo
O mundo vê paralisado o destino das
mulheres e meninas do Afeganistão. A tragédia já está escrita, todos sabem.
Elas vão ser impedidas de estudar, trabalhar, circular, viver a vida. As que se
rebelarem, morrerão. É como se fosse um destino inevitável, e aceitável, que
mais da metade de um país seja encarcerada e torturada. As mulheres têm sido ao
longo da história humana submetidas às mais variadas violências. Do assédio
moral ao sexual. Das pressões físicas às psicológicas. O tempo passa, os
séculos passam, e elas estão sempre sendo excluídas, tolhidas, caladas.
As mulheres do Afeganistão são a ponta extremada de um problema que o mundo nunca enfrentou com a radicalidade necessária: a discriminação contra a mulher. Em outros países islâmicos as pessoas do sexo feminino são também tratadas como um ser de segunda classe e oprimidas com base em interpretações fundamentalistas do islamismo. Mas não apenas lá. Em todas as religiões, culturas, países, gerações, as mulheres enfrentam, em graus diferentes, de maneira diversa, a violência de serem tratadas como inferiores.
O mito de Antígona tem quase dois mil e
quinhentos anos e permanece vivo. Das tragédias gregas, está entre as mais
conhecidas. Vem sendo encenada repetidamente, revisitada de todas as formas,
desde a primeira vez que foi ao palco, provavelmente, em 442 a.C. É um grito
que atravessa o tempo. A professora da Universidade da Califórnia Helen
Morales, no seu livro “Presença de Antígona”, usa como epígrafe uma frase do
texto de Sófocles, significativo como vários outros. “Claramente a menina tem
um espírito feroz… Ela ainda não sabe se submeter a circunstâncias más.” Quem
diz isso são os anciãos de Tebas sobre a jovem que se rebelou contra o rei
Creonte lutando pelo direito de enterrar seu irmão Polinices. A punição final
para a ousadia de Antígona é ser encarcerada entre os mortos. Assim viverão as
mulheres afegãs, assim vão crescer as meninas afegãs. O mundo sabe disso, muito
vai se falar sobre o assunto, mas elas estarão lá entregues ao seu destino
trágico, como antígonas modernas, diante de uma plateia que pouco fará para
resgatá-las. Os grandes países estão imersos em sua impotência. Vários foram
derrotados pelos afegãos, e, portanto, as mulheres serão consideradas despojos
de uma guerra perdida.
No mundo inteiro meninas e mulheres sofrem.
Alguém pode dizer que são dores incomparáveis. São sim. Há gradações e por isso
eu escrevi aqui que a dor da afegã é a ponta mais extremada de um problema da
humanidade. Os casos de feminicídio, da violência que chamam “doméstica”, dos
abusos em todos os países, como aqui, neste momento, não nos deixam esquecer
que o machismo é estrutural, é universal, é milenar.
O poder é masculino, intoleravelmente
masculino. As exceções são apenas isso, casos à parte. Algumas mulheres brilham
por algum tempo, como fez Angela Merkel, como um dia fez Indira Gandhi, depois
tudo volta a ser como era. O Brasil de Bolsonaro chega a ser caricato, com a
ministra da Mulher e sua visão fundamentalista da Bíblia dizendo que a mulher
tem que ser submissa ao marido, com o Itamaraty se unindo a países radicais
islâmicos nas votações internacionais, com as piadas machistas do presidente,
com o bolsonarista histérico, tipo Sérgio Reis, dizendo “eu não tenho medo, eu
não sou mulher”. O idioma tem inúmeros símbolos da segregação. Fala-se “o
homem” para se referir à humanidade. Viril, atributo masculino, é sinônimo de
coragem. A lista é longa.
Eu poderia falar dos avanços e eles
existem, empurrados pelas várias ondas do feminismo. Somos nós mulheres de
diversas gerações que estamos forçando as portas fechadas. Mas, sinceramente, é
preciso falar das permanências. Por que tão longa desigualdade? Por que por
tantos milênios da história humana as mulheres foram condenadas ao papel
secundário, muitas vezes em suas próprias vidas?
Creonte diz à altiva Antígona: “Quem deve
obediência ao próximo não pode ter pensamentos arrogantes como os teus”. Em
seguida, dirigindo-se ao coro, afirma: “Pois homem não serei — ela será o homem
— se esta vitória lhe couber sem punição.” A tragédia de Antígona está escrita,
todos sabem. O que a trouxe da Grécia antiga aos dias de hoje é que a história
da rebeldia feminina sendo punida tem se repetido ao longo dos séculos. E se
repete, agora, no Afeganistão.
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