domingo, 22 de agosto de 2021

Míriam Leitão - Destino trágico das mulheres afegãs

O Globo

O mundo vê paralisado o destino das mulheres e meninas do Afeganistão. A tragédia já está escrita, todos sabem. Elas vão ser impedidas de estudar, trabalhar, circular, viver a vida. As que se rebelarem, morrerão. É como se fosse um destino inevitável, e aceitável, que mais da metade de um país seja encarcerada e torturada. As mulheres têm sido ao longo da história humana submetidas às mais variadas violências. Do assédio moral ao sexual. Das pressões físicas às psicológicas. O tempo passa, os séculos passam, e elas estão sempre sendo excluídas, tolhidas, caladas.

As mulheres do Afeganistão são a ponta extremada de um problema que o mundo nunca enfrentou com a radicalidade necessária: a discriminação contra a mulher. Em outros países islâmicos as pessoas do sexo feminino são também tratadas como um ser de segunda classe e oprimidas com base em interpretações fundamentalistas do islamismo. Mas não apenas lá. Em todas as religiões, culturas, países, gerações, as mulheres enfrentam, em graus diferentes, de maneira diversa, a violência de serem tratadas como inferiores.

O mito de Antígona tem quase dois mil e quinhentos anos e permanece vivo. Das tragédias gregas, está entre as mais conhecidas. Vem sendo encenada repetidamente, revisitada de todas as formas, desde a primeira vez que foi ao palco, provavelmente, em 442 a.C. É um grito que atravessa o tempo. A professora da Universidade da Califórnia Helen Morales, no seu livro “Presença de Antígona”, usa como epígrafe uma frase do texto de Sófocles, significativo como vários outros. “Claramente a menina tem um espírito feroz… Ela ainda não sabe se submeter a circunstâncias más.” Quem diz isso são os anciãos de Tebas sobre a jovem que se rebelou contra o rei Creonte lutando pelo direito de enterrar seu irmão Polinices. A punição final para a ousadia de Antígona é ser encarcerada entre os mortos. Assim viverão as mulheres afegãs, assim vão crescer as meninas afegãs. O mundo sabe disso, muito vai se falar sobre o assunto, mas elas estarão lá entregues ao seu destino trágico, como antígonas modernas, diante de uma plateia que pouco fará para resgatá-las. Os grandes países estão imersos em sua impotência. Vários foram derrotados pelos afegãos, e, portanto, as mulheres serão consideradas despojos de uma guerra perdida.

No mundo inteiro meninas e mulheres sofrem. Alguém pode dizer que são dores incomparáveis. São sim. Há gradações e por isso eu escrevi aqui que a dor da afegã é a ponta mais extremada de um problema da humanidade. Os casos de feminicídio, da violência que chamam “doméstica”, dos abusos em todos os países, como aqui, neste momento, não nos deixam esquecer que o machismo é estrutural, é universal, é milenar.

O poder é masculino, intoleravelmente masculino. As exceções são apenas isso, casos à parte. Algumas mulheres brilham por algum tempo, como fez Angela Merkel, como um dia fez Indira Gandhi, depois tudo volta a ser como era. O Brasil de Bolsonaro chega a ser caricato, com a ministra da Mulher e sua visão fundamentalista da Bíblia dizendo que a mulher tem que ser submissa ao marido, com o Itamaraty se unindo a países radicais islâmicos nas votações internacionais, com as piadas machistas do presidente, com o bolsonarista histérico, tipo Sérgio Reis, dizendo “eu não tenho medo, eu não sou mulher”. O idioma tem inúmeros símbolos da segregação. Fala-se “o homem” para se referir à humanidade. Viril, atributo masculino, é sinônimo de coragem. A lista é longa.

Eu poderia falar dos avanços e eles existem, empurrados pelas várias ondas do feminismo. Somos nós mulheres de diversas gerações que estamos forçando as portas fechadas. Mas, sinceramente, é preciso falar das permanências. Por que tão longa desigualdade? Por que por tantos milênios da história humana as mulheres foram condenadas ao papel secundário, muitas vezes em suas próprias vidas?

Creonte diz à altiva Antígona: “Quem deve obediência ao próximo não pode ter pensamentos arrogantes como os teus”. Em seguida, dirigindo-se ao coro, afirma: “Pois homem não serei — ela será o homem — se esta vitória lhe couber sem punição.” A tragédia de Antígona está escrita, todos sabem. O que a trouxe da Grécia antiga aos dias de hoje é que a história da rebeldia feminina sendo punida tem se repetido ao longo dos séculos. E se repete, agora, no Afeganistão.

 

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