O Globo
Cabul caiu. Caiu por quê? O mundo acompanha
aturdido as cenas dilacerantes que marcam a troca de regime no Afeganistão. E
quer entender, julgar, opinar — embora até ontem, do Afeganistão, se conhecesse
pouco além da fotografia da menina de penetrantes olhos verdes na capa da
National Geographic (Steve McCurry, 1984) ou do filme e best-seller mundial “O
caçador de pipas”, de Khaled Hosseini. Há pressa em explicar a implosão do
regime afegão mantido de pé pelos EUA por 20 anos e medo pelo ominoso retorno
ao poder do Talibã.
A História tem menos pressa. Ken Burns e
Lynn Novick precisaram de 40 anos de recuo para construir a monumental série
televisiva em dez partes sobre a Guerra do Vietnã. O livro extraído da série,
“The Vietnam War — An intimate story”, pode servir de roteiro a quem vê raízes
aparentadas na derrocada do colosso militar americano em 1975, e agora no
Afeganistão.
Após o acordo assinado em Paris por EUA,
Vietnã do Norte (comunista) e Vietnã do Sul (apoiado pelos americanos) em 1973,
uma cerimônia formal civilizadíssima parecia indicar um final decente. Enquanto
na Hanói comunista o regime liberava o último lote de prisioneiros de guerra
americanos, no aeroporto de Saigon (a capital do Sul, hoje Cidade de Ho Chi
Minh) os últimos 68 combatentes americanos partiam do solo vietnamita em
cumprimento ao acordo. Restavam os não uniformizados: adidos militares,
diplomatas, terceirizados, agentes da CIA, além de 150 fuzileiros navais para
proteger a embaixada.
Restava, sobretudo, o presidente Nguyen Van Thieu, que comandava o Vietnã do Sul à base de bravatas sustentáveis apenas enquanto contou com o poderio dos EUA. Com o dinheiro e assistência americanos, montara um exército de 1 milhão de soldados — nominalmente o quinto maior do mundo. Na realidade, grande parte desse milhão era constituído por “soldados-fantasmas” (inexistentes), “soldados ornamentais” (presentados com postos longe da guerra) e “soldados decorativos” (só precisavam comparecer a cerimônias).
A garantia de ajuda militar caso a situação
deteriorasse, recebida de viva voz do presidente Richard Nixon — “Você pode
contar conosco” —, deixou de valer a partir de 8 de agosto de 1974. Nixon
renunciara, atolado pelo escândalo Watergate, e seu sucessor Gerald Ford foi
impedido pelo Congresso de liberar qualquer nova assistência militar a Saigon.
Sem a proteção aérea dos B-52 e com a economia em colapso desde a retirada
militar dos EUA, o regime de Thieu foi se esmigalhando em corrupção e
roubalheiras a partir do próprio palácio presidencial. “Um pouco de corrupção
azeita a máquina”, contemporizava Graham Martin, embaixador despachado por Ford
ao Vietnã.
Hoje há concordância quanto à
responsabilidade singular de Martin na horrenda debacle humanitária que se
seguiu. O diplomata, além de guerreiro frio por convicção, perdera um filho em
combate no Vietnã e abrigava um rancor sem freios pelo regime de Hanói. Até o
desfecho horrendo, recusou-se a fazer qualquer planejamento de evacuação.
Informado de que até seis divisões do exército eram dizimadas em semanas,
rebateu a proposta da CIA para a evacuação de cerca de 200 mil colaboradores
sul-vietnamitas com um “minhas fontes são melhores; vamos salvar a situação”.
Criou-se o ilusionismo de uma “retirada estratégica” que transformaria Saigon
numa Stalingrado, até o Norte aceitar negociar um novo governo de coalizão.
Faltando 13 dias para a queda do regime,
foi a vez de o comandante naval da região apresentar quatro opções de evacuação
ao embaixador. Por ordem de facilidade: 1) em voos comerciais; 2) em aviões de
transporte militares; 3) por mar em navios ancorados em Saigon; ou 4) como
último recurso, em voos de helicóptero até a flotilha de guerra no Mar da
China. Todas foram recusadas.
Diante da iminente hecatombe, Washington
fez saber a Thieu que sua renúncia seria bem-vinda. Um manda, outro obedece.
Num discurso televisionado de 90 minutos, entre furioso e choroso, ele
proclamou: “Vocês, americanos, com seus 500 mil soldados, vocês não foram
derrotados... Vocês saíram correndo. Vocês nos deixaram morrer sob fogo
inimigo... Estou renunciando, mas não estou desertando”. Cinco dias depois, na
calada da noite, sua limusine negra encostou na pista ainda aberta do aeroporto
da capital. O DC-6 que o aguardava decolou no escuro.
Nenhuma das três primeiras opções de
evacuação resistiu ao avanço comunista. Sobrou a pior. Às 10h48 da manhã de 29
de abril de 1975, em Saigon, a rádio designada para transmitir a senha de
evacuação começou a tocar “White Christmas”, seguida de mensagem pouco
críptica: “A temperatura em Saigon é de 105 graus Fahrenheit e subindo”.
Iniciava-se o trevoso vaivém de 50 helicópteros entre a flotilha de navios de
guerra e três pontos de resgate em Saigon — dois na embaixada, o terceiro num
anexo dos EUA próximo ao aeroporto. Keyes Beech, veterano correspondente
daquela guerra, descreveu assim o próprio horror ao procurar refúgio na
embaixada: “Em meio à multidão ensandecida, não éramos mais jornalistas. Éramos
apenas homens em luta pela vida, empurrando, rasgando, atropelando quem estava
à frente. Éramos como animais. Agora eu sei, pensei comigo, como é ser vietnamita.
Sou um deles. Mas, se eu conseguir pular o muro, volto a ser americano”.
Quando os comunistas irromperam no palácio
presidencial, encontraram um retrato rasgado de Gerald Ford e uma citação
emoldurada de Lawrence da Arábia: “Melhor deixá-los fazer o que devem de forma
imperfeita do que fazê-lo você mesmo, pois o país pertence a eles, a seus
modos, enquanto seu tempo é curto”. Vale para o Afeganistão de hoje.
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