Revista Veja
A cada novo embate, no plano das
instituições, nos tornamos mais fortes
Desde o início do atual governo, e mesmo
antes, escutamos que nossa democracia está por um fio, que estamos muito perto
do abismo, que andamos, a cada duas ou três semanas, na iminência de um
“golpe”. Nos últimos tempos tivemos o golpe do general Braga Netto, que teria
ameaçado o presidente do Congresso (ambos negaram); o golpe do desfile de
tanques, em Brasília, que terminou no impagável fumacê. E, claro, o do 7 de
Setembro, com direito a toneladas de anúncios de invasão do Congresso ou de um
novo 1964. No dia seguinte, a sensacional explicação: “o golpe fracassou”.
Bom humor à parte, a democracia supõe um
estado permanente de atenção. Isso vale especialmente para Bolsonaro, que nunca
escondeu seu gosto pelo regime autoritário e sua quase veneração por tipos como
o coronel Brilhante Ustra. É razoável supor que se ele pudesse entrar em um
túnel do tempo e se transformar no presidente Médici, nos anos 70, ele o faria
com gosto.
A questão é que ele não pode. Daí seu repertório de bravatas e ameaças vazias. Não acatar determinações do Supremo, não aceitar eleições sem o voto impresso, e por aí vai. E a mais curiosa, que alguém sugeriu lembrar o velho Getúlio: “Daqui só saio morto”. Na sequência da fanfarronice, os sucessivos recuos. Sendo o último o mais espetacular. A “carta à nação”, explicando seus arroubos como “calor do momento”, dois dias depois daquela fala desastrosa na Avenida Paulista.
O episódio é ilustrativo. O presidente diz
algo fora de propósito e é logo enquadrado pela reação das instituições.
Formais e informais. A opinião pública, redes e organizações da sociedade,
partidos e lideranças no Congresso. E a linha dura: os pronunciamentos dos
ministros do STF Luiz Fux e Luís Roberto Barroso — que também preside o TSE —,
seguidos pela ação moderadora do ex-presidente Temer.
Tudo isso sinaliza resiliência democrática.
E não é de hoje. Nos processos de impeachment de 1992 e 2016 já foi assim. O
país vem mostrando, como li tempos atrás de um teórico da “crise da
democracia”, que “seu arcabouço institucional é mais robusto do que havíamos
imaginado”.
Isso vem do pacto democrático dos anos 1980
e da Constituição. Ela nos legou um modelo disfuncional de gestão pública, mas
soube fortalecer instituições de Estado, em especial do mundo jurídico, e
consolidou um sistema sofisticado de freios e contrapesos. Nosso modelo de
coalizões majoritárias, como enfatiza o cientista político Carlos Pereira, tem
se mostrado inclusivo das elites políticas, e nossa Suprema Corte vem atuando
como real poder de contenção e moderação do Executivo.
Um dos efeitos da consolidação democrática
foi a crescente organização da sociedade civil. Eram poucos os grupos de
advocacy, à época da transição. Hoje há um tecido social estruturado,
potencializado pelas redes de cidadãos na internet. O país desenvolveu uma
tradição de grandes manifestações de rua, em regra pacíficas, desde as
manifestações de 2013. Além disso, há um fator essencial: o apoio difuso na sociedade.
Pesquisa recente do Datafolha mostrou que 75% das pessoas apoiam a democracia
como “melhor forma de governo”. Maior suporte desde o início da série, em 1989.
“A cada novo ciclo nos tornamos reativos à
virada de mesa”
É igualmente interessante observar o
retrospecto histórico. Adam Przeworski afirmou que “nenhuma democracia ruiu
em países com renda per capita superior à da Argentina em 1976, com exceção da
Tailândia em 2006”. Maior a renda média, maior a chance de sobrevivência
democrática, e é fácil concluir que somos diferentes hoje do que éramos em
1964. O argumento mais forte de Przeworski, porém, diz respeito ao processo de
“autoinstitucionalização” das democracias. Pesquisando 3 000 processos
eleitorais, desde o fim do século XVIII, ele
verificou como o sistema democrático reforça
a si mesmo. A cada alternância pacífica
de poder, vai se consolidando o processo, e as chances de ruína
democrática “tendem a zero a
partir de seis alternâncias”.
No ano que vem teremos nossa nona eleição
desde 1989. Todas pacíficas, feitas com lisura e com direito a passagem de
faixa, como manda o figurino. Se Bolsonaro perder e não quiser passar a faixa,
como já insinuou, apenas repetirá o que fez o ex-presidente Figueiredo. Sairá
pela porta dos fundos. O fato é que fomos internalizando os procedimentos da
democracia. Sabemos como fazer. A cada novo ciclo, com dores e dramas, nos
tornamos mais reativos a qualquer virada de mesa.
Há outro aspecto a considerar. Jogar “fora
das quatro linhas” demandaria o ingresso dos militares em um tipo de aventura
autoritária estranha ao que as Forças Armadas vêm construindo. “Os militares
não darão apoio a qualquer desvio constitucional”, diz Raul Jungmann,
ex-ministro da Defesa. Ele faz uma distinção entre os militares mais antigos,
hoje na reserva, talhados na cultura da Guerra Fria, e os militares hoje no
comando. Esta nova geração concebe a atividade militar como essencialmente
profissional. “A cúpula, as escolas de formação, esses oficiais superiores”,
diz Jungmann, “pensam muito mais na profissão e no respeito à democracia”.
É evidente que há riscos. O mundo digital
incentiva a radicalização, a guerra cultural envenenou o debate e há os novos
populismos eletrônicos. Nossas democracias podem preservar a competitividade
eleitoral e ao mesmo tempo andar ladeira abaixo em sua vida institucional.
Sintoma disso, no Brasil, foi o uso generalizado, nos últimos tempos, da Lei de
Segurança Nacional.
A primeira lição a tirar disso é estar em
alerta. Outra é a isenção: a democracia demanda um olhar dirigido a todos os
lados do jogo. De nada vale o olhar seletivo. São inaceitáveis as falas do
presidente relativizando o respeito às regras do jogo, assim como a censura
prévia e as restrições indevidas à liberdade de expressão. Por fim, é preciso
senso de proporção: não confundir, à direita ou à esquerda, a divergência
quanto a políticas públicas com identificação de riscos à democracia.
O tema da democracia não deve ser
instrumentalizado como arma da guerra política. Seu debate não deve se tornar,
ele mesmo, fonte permanente de toxina ideológica obstruindo o debate sereno dos
problemas do país. A defesa da democracia supõe fidelidade a princípios, mais
do que amor e ódio a essa ou àquela posição. A democracia, por definição,
pertence a todos e a ninguém em particular.
O país fará, em 2022, sua nona eleição
desde a redemocratização. E fará com lisura, como sempre o fez. Haverá muita
retórica, radicalização e distensão. Qualquer um que insinue jogar “fora das
quatro linhas” será devidamente enquadrado e, no limite, posto para fora do
jogo. Somos um bom exemplo da tese de Przeworski: a cada novo embate, no plano
das instituições, nos tornamos mais fortes. Somos uma democracia que aprende.
Um modo de viver erguido a duras penas, nos anos 80, cheio de coisas a
consertar, mas “uma viagem de qualidade institucional sem volta”, como bem
disse o poeta e ex-ministro Ayres Britto.
*Fernando
Schüler é cientista político e professor do Insper
Publicado em VEJA de 29 de setembro de
2021, edição nº 2757
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