O Globo
Estreou em São Paulo o filme “Nem tudo se
desfaz”, de Josias Teófilo. É uma leitura equivocada, porém muito interessante
e reveladora, da história brasileira recente, ligando os protestos de junho de
2013, o impeachment de Dilma Rousseff, a crise do governo Temer e a eleição de
Jair Bolsonaro.
Em 1985, Luc Ferry e Alain Renaut
publicaram “O pensamento 1968”, que apresentava os protestos de maio de 1968 na
França como um avanço do individualismo e as obras de Foucault, Derrida,
Bourdieu e Lacan como expressão desse movimento. O filósofo Cornelius
Castoriadis, que participou dos protestos, se indignou com a “ligação
falaciosa” entre as manifestações e as obras de autores que “lhes eram completamente
estrangeiras” e se surpreendeu como, passados poucos anos, com os protagonistas
ainda vivos, um evento político de grande magnitude podia ser apresentado como
seu oposto.
Algo assim aconteceu também com junho de 2013. Não deveria haver controvérsia sobre o que pediam os protestos. Diferentes pesquisas de opinião investigaram os manifestantes e encontraram sempre dois conjuntos de reivindicações simultâneas: de um lado, reivindicações sociais — transporte, educação e saúde; de outro, o combate à corrupção.
No filme, pouco se diz sobre as demandas
sociais. Quando aparecem, são tratadas como uma ilusão, uma expectativa ingênua
de que se cumprissem promessas vazias dos constituintes de 1988 — como se o SUS
e a universalização da educação básica não tivessem sido implementados após
1988 e como se a cidadania não pudesse aspirar a direitos sociais ainda mais
amplos.
Os protestos contra Dilma, a crise do
governo Temer e a eleição de Bolsonaro seriam a expressão da outra metade das
reivindicações, que o filme apresenta como as reivindicações que tiveram
consequências reais, se esquecendo da redução das tarifas de transporte, das
greves de 2013-2014 e das ocupações de escolas de 2015-2016.
Na verdade, ao olhar apenas para metade do
conteúdo reivindicativo de junho de 2013, o filme reproduz a dinâmica da
polarização que consistiu em os estratos de esquerda e de direita da classe
política subordinarem o levante selvagem da sociedade civil, dividindo as
demandas, jogando uma contra a outra, como se, para ser anticorrupção, fosse
necessário ser contra as pautas sociais na figura de um Estado grande e, para
defender a ampliação de direitos sociais, fosse necessário ser contra o combate
à corrupção. A potente mobilização de uma sociedade civil contra a classe
política se transforma assim no conflito fratricida entre lulistas e
bolsonaristas.
Apesar de fazer uma leitura bolsonarista,
que liga sem mediações adequadas junho de 2013 às eleições de 2018, o filme
joga muita luz sobre a ascensão de Bolsonaro.
Seus momentos mais reveladores são quando
apresenta as guerras culturais como uma luta populista contra o elitismo dos
progressistas, quando mostra o caráter contracultural do politicamente
incorreto e quando apresenta a centralidade da comunicação digital para a
ascensão da nova direita. Por esses motivos, é um filme que merece ser visto.
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