EDITORIAIS
O desafio da verdade no debate público
O Estado de S. Paulo
Inerente a todo regime democrático, é fascinante a empreitada de propor ao eleitor racionalidade, responsabilidade e uma fundada esperança
As recentes pesquisas de opinião são, em
boa medida, um forte alento. A maioria da população brasileira tem sido capaz
de enxergar com realismo o que é o governo Bolsonaro. Segundo a última pesquisa
Ipec, 68% dos brasileiros desaprovam a maneira como Jair Bolsonaro governa o
País. Entre os brasileiros em idade de votar, 42% consideram o governo péssimo
e 11%, ruim.
Perante a total disfuncionalidade do
governo Bolsonaro, talvez esses números pareçam tímidos. Não se pode esquecer
que 22% dos brasileiros continuam avaliando a administração federal como boa ou
ótima. De toda forma – e tendo em conta o poder de sedução do populismo –, é
especialmente alvissareiro constatar que a maioria da população não está mais
refém da manipulação e da desinformação bolsonaristas.
Em sua maioria, a população entendeu quem é Jair Bolsonaro. O que o presidente da República diz continua causando vergonha e prejuízo ao País, mas já não recebe o mesmo crédito. Dois anos e meio de Jair Bolsonaro no Palácio do Planalto reduziram a força do bolsonarismo – e isso é uma excelente notícia para o País.
Mas as pesquisas de opinião não trazem
apenas dados positivos. Nos cenários testados pelo Ipec, Luiz Inácio Lula da
Silva aparece não apenas como o favorito nas intenções de voto, mas com
porcentual de votos suficiente para ganhar a eleição no primeiro turno.
A respeito desses números, convém lembrar
que as eleições presidenciais não são em setembro de 2021. Há muita coisa a
acontecer até o pleito do ano que vem, quando as circunstâncias do País e dos
candidatos serão bem diferentes das que se veem hoje. As sondagens de intenção
de voto não são, portanto, uma prognose inexorável sobre as urnas de 2022.
De toda forma, mesmo com todas as
necessárias ressalvas, as pesquisas sobre intenção de voto revelam um dado
fundamental para o futuro do País. Constata-se uma frágil percepção sobre quem
é de fato Luiz Inácio Lula da Silva, seu histórico e suas propostas. Tendo de
conviver diariamente com a realidade econômica e social imposta pelo
bolsonarismo, o eleitor sabe quem é Bolsonaro. No entanto, parece ter-se
esquecido de quem é Lula.
O fenômeno é preocupante. O regime
democrático baseia-se fundamentalmente no controle exercido pelo eleitor. Se a
maioria da população, por algum estranho mecanismo psicológico, deixa de ver
Luiz Inácio Lula da Silva como causa central da atual crise, em todas as suas
dimensões (social, econômica, moral e cívica), tem-se um gravíssimo problema.
Em vez de gerar o resultado que o eleitor espera – desenvolvimento social e
econômico, melhoria da moralidade pública, fortalecimento da cidadania, entre outras
aspirações –, o voto pode produzir a situação oposta, repetindo e ratificando a
origem da crise.
O cenário das sondagens de opinião revela,
assim, um grande desafio para o País. Deve-se destacar, no entanto, que o
futuro ainda não foi traçado. Há tempo suficiente para reverter a situação. A
título de exemplo, Jair Bolsonaro obteve sua maior taxa de aprovação popular no
final de 2020. Ou seja, em menos de um ano, a percepção da população sobre o
governo federal mudou radicalmente.
Além de recordar a responsabilidade de Luiz
Inácio Lula da Silva sobre a situação atual do País – basta ver que foi o líder
petista quem inventou a candidata Dilma Rousseff e foi com medo dele que o
eleitor elegeu Bolsonaro –, essa empreitada de racionalidade no debate público
inclui desvelar o voluntarismo e o ilusionismo das ideias petistas. Há uma
enorme distância entre o que o País precisa – propostas responsáveis e
consistentes – e o que o PT vem entregando ao longo do tempo – escândalos
públicos, aparelhamento e inchaço estatal, cizânia política e negacionismo
econômico.
O desafio é grande, mas não deve gerar
perplexidade ou paralisia. Inerente a todo regime democrático, trata-se da
fascinante empreitada de propor ao eleitor racionalidade, responsabilidade e
fundada esperança. Ao contrário do que alguns apregoam, as ilusões do
autoritarismo e do populismo são sempre efêmeras.
A impotência do Brasil
O Estado de S. Paulo
O próximo presidente terá um trabalho enorme para reconstruir a reputação do País
O cientista político Joseph Nye conceituou
como soft power a
capacidade de determinados países de influenciar e seduzir outros por meio da
inspiração evocada por seus valores, ideologias e modos de vida. Nye contrapôs
esse tipo de poder, mais brando, ao poder bruto, coercitivo, tradicionalmente
advindo da força militar e da pujança econômica.
Bem antes da conceituação do chamado soft power, José Maria da Silva
Paranhos Júnior, o Barão do Rio Branco, já o tinha como a espinha dorsal do que
viria a ser a doutrina diplomática brasileira. Ao mesmo tempo experiente e
visionário, arguto observador da construção das relações de poder entre as nações,
Rio Branco sabia que o lugar do Brasil no mundo não seria definido por seu
poderio bélico nem por sua potência econômica, ambos muito aquém dos de países
mais desenvolvidos.
Em grande medida, portanto, o Brasil é o
que é hoje – um país de dimensões continentais que garantiu suas fronteiras
quase sempre por meio de negociação e que é pacífico na relação com todo o
mundo – graças à sua diplomacia. Uma das razões pelas quais o chefe de Estado
brasileiro tem a honra de abrir a Assembleia-Geral da ONU é o reconhecimento
aos esforços do País para a criação da própria organização e, sobretudo, por
seu histórico empenho em solucionar conflitos de forma pacífica.
Ao realizar o mais indigno discurso que um
chefe de Estado brasileiro já ousou pronunciar da tribuna da ONU, o presidente
Jair Bolsonaro, na terça-feira passada, não apenas envergonhou os concidadãos
que deveria representar com honradez, como minou esse longo e profícuo trabalho
da diplomacia brasileira na construção da imagem do Brasil no exterior, e que
tantas conquistas legou ao País. Hoje, o Brasil de Bolsonaro, que abandonou o
poder brando em favor do poder truculento, na verdade é miseravelmente
impotente.
A despeito das significativas mudanças de
orientação política no curso da história republicana, jamais o País havia
perdido de vista os pilares da doutrina diplomática consagrada em todas as
Constituições desde 1891 – nem mesmo nos duros tempos da ditadura militar. “Um
diplomata não serve a um regime, e sim a um país”, escreveu certa vez Rio Branco,
ele mesmo um monarquista convicto que serviu brilhantemente a quatro
presidentes da República entre 1902 e sua morte, em 1912.
Consta que Bolsonaro praticamente rasgou o
discurso “moderado” redigido pelo chanceler Carlos França e pelo secretário de
Assuntos Estratégicos da Presidência da República, almirante Flávio Rocha, e
escreveu outro com auxílio do filho deputado, Eduardo Bolsonaro – que o pai
queria ver embaixador nos Estados Unidos tendo como qualificação a experiência
de ter “fritado hambúrguer” em uma lanchonete americana. De forma livre e
consciente, o presidente decidiu ignorar sua responsabilidade como chefe de
Estado e falar da tribuna da ONU diretamente a seus apoiadores mais amalucados.
A versão final do discurso, como o mundo inteiro teve o desprazer de ouvir, é
um amontoado de mentiras, distorções da realidade e teorias conspiratórias.
Ao mesmo tempo que nega peremptoriamente a
realidade que o cerca, Bolsonaro não propõe nada em troca. Não é possível nem
sequer afirmar que seu governo sugere uma nova política externa para o Brasil.
Seu discurso “sem alma”, como bem classificou a colunista Rosângela Bittar,
do Estado, foi
tão desértico como sua agenda para o País.
Sob Bolsonaro, o Brasil foi de um
importante interlocutor em questões de interesse global a pária internacional,
a motivo de chacota. Isso nada tem de trivial. A faina do próximo presidente da
República, seja quem for, para reconstruir a reputação internacional do País
será árdua, tarefa que dará trabalho dobrado aos genuínos herdeiros de Rio
Branco. É essa a dimensão dos estragos provocados pela pequenez daquele a quem,
desafortunadamente, coube conduzir o País num dos momentos mais desafiadores da
história.
No pódio da inflação
O Estado de S. Paulo
O Brasil se destaca pela alta de preços, turbinada por abusos da cúpula federal
Inflação
de 7,2% é o principal destaque do Brasil em 2021, no panorama global da
Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). No
quadro recém-atualizado, só dois países do Grupo dos 20 (G-20) apresentam maior
desarranjo nos preços ao consumidor: Argentina e Turquia, com altas estimadas
em 47% e 17,8%. Mais próximos dos problemas e com informação mais pronta,
economistas brasileiros calculam resultados mais desfavoráveis e projetam para
este ano um aumento de 8,35% para os preços ao consumidor. A estimativa para
2022 chegou a 4,10%, menos sombria que a da OCDE (4,9%), mas a tendência tem
sido de piora, como percebem, de forma dolorosa, as famílias confrontadas no
dia a dia com produtos essenciais sempre mais caros.
Em relação ao crescimento econômico, os
técnicos da OCDE foram na contramão dos brasileiros. No Brasil, os analistas do
mercado têm reduzido as projeções de expansão do Produto Interno Bruto (PIB). O
número calculado para 2021 passou de 5,27% a 5,04% em quatro semanas, segundo o
boletim Focus, do Banco
Central (BC). A expectativa para 2022 caiu para 1,63%, mas algumas grandes
instituições do mercado já divulgaram estimativas em torno de 0,5%. Segundo a
OCDE, o PIB do Brasil deve crescer 5,2% neste ano e 2,3% no próximo, superando
a evolução estimada no mercado. No mesmo cenário global, no entanto, o Brasil é
superado em 2021 por 11 países do G-20 no quesito crescimento. Na liderança
aparecem a Índia (9,7%), a China (8,5%) e a Turquia (8,4%).
Mas o Brasil tem “um dos melhores
desempenhos entre os emergentes”, disse na Organização das Nações Unidas (ONU),
na terça-feira, o presidente Jair Bolsonaro. Entre os emergentes do G-20, no
entanto, Índia, Turquia, Argentina (7,6%) e México (6,3%) crescem mais que o Brasil
neste ano, de acordo com a OCDE. Quanto à China, é difícil, nesta altura,
classificá-la como emergente, se forem considerados o seu desenvolvimento
industrial e o seu avanço científico e tecnológico.
A comparação com os demais emergentes
também fica difícil se forem levados em conta o desemprego e o agravamento das
condições dos mais pobres, a partir da pandemia, incluindo o aumento do número
de pessoas subnutridas. A fome voltou a aparecer com destaque no cenário
brasileiro, especialmente quando a administração federal diminuiu e em seguida
eliminou a ajuda aos mais vulneráveis. O auxílio só foi retomado, e de forma
parcial, a partir de abril, depois de três meses de suspensão, mas detalhes
desse tipo foram omitidos pelo presidente Bolsonaro, em seu discurso na ONU, na
passagem a respeito do socorro aos pobres.
O Brasil encaixa-se mal no quadro
relativamente otimista da OCDE. Embora a estimativa de crescimento global em
2021 tenha diminuído de 5,8% em maio para 5,7% em setembro, o cenário se mantém
promissor. A expansão mundial de 4,6% calculada para 2022, 0,1 ponto superior à
indicada na avaliação anterior, também é satisfatória. O avanço da imunização,
insuficiente em muitos países em desenvolvimento, é fator de incerteza. A
variante Delta, evidente causa de preocupação, tem produzido efeito econômico
relativamente moderado em países com altas taxas de vacinação. Em outros, no
entanto, afetou o impulso de recuperação e agravou os problemas de custos e de
suprimento.
O documento destaca as pressões inflacionárias,
sensíveis em todo o mundo, mas qualifica o problema como provavelmente
passageiro. Isso pode ser verdadeiro em outros países. No Brasil, a tese de um
surto inflacionário foi mantida por algum tempo pelo BC, mas já perdeu efeito
prático. No mercado brasileiro, as pressões foram crescentes durante a maior
parte do ano e, segundo o mercado, a inflação só deve chegar à meta em 2023.
Como regra básica, a OCDE recomenda a
manutenção de estímulos fiscais e monetários, por algum tempo, para garantir o
prosseguimento da retomada. É complicado seguir a recomendação no Brasil, onde
os desmandos do presidente ameaçam a saúde das finanças públicas, a
estabilidade e a previsibilidade dos preços.
Estudo sob suspeita
Folha de S. Paulo
Urge apurar procedimentos de pesquisa da
Prevent Senior com hidroxicloroquina
A operadora de planos de saúde Prevent
Senior tem sido alvo de graves acusações a respeito de sua atuação durante a
pandemia.
Um dossiê organizado por 15 médicos da
instituição, entregue à CPI da Covid, afirma que a empresa usou pacientes como
cobaias em uma pesquisa com medicamentos do chamado tratamento preventivo
—defendido, entre outros, pelo presidente Jair Bolsonaro— que hoje são
desaconselhados pelas autoridades de saúde.
O documento diz que a Prevent Senior não
prestou informações aos doentes, alterou prontuários e omitiu sete mortes de
pessoas tratadas com hidroxicloroquina, uma das drogas usadas no experimento.
Bolsonaro divulgou o estudo em redes sociais, no dia 18 de abril de 2020, antes
da publicação oficial de resultados.
Um dos médicos declarou que o prontuário do
óbito do médico negacionista Anthony Wong foi manipulado para ocultar
complicações causadas pela Covid-19. Também a explicação da morte de Regina
Hang, mãe do empresário bolsonarista Luciano Hang, teria sido objeto de
manipulação.
As acusações justificam as medidas tomadas
pela CPI na tentativa de elucidar o ocorrido. Há a hipótese de que a Prevent
Senior tenha
atuado em conexão com o grupo, conhecido como “gabinete paralelo”, que prestava
assessoria informal à Presidência da República na defesa de terapias
reprovadas por autoridades sanitárias.
Preocupações com a Prevent Senior já haviam
sido manifestadas pelo então ministro Luiz Henrique Mandetta, em março de 2020,
pouco antes de deixar a Saúde.
Pedro Batista Júnior, diretor da empresa,
contestou o dossiê em depoimento à CPI, negou relações com o “gabinete
paralelo” e acusou os autores da denúncia de fraude.
À Folha, o presidente-executivo, Fernando
Parrillo, afirmou
que o estudo não seguiu padrões científicos e, pois, não provava a
eficácia da cloroquina —mas teria contado com o consentimento dos pacientes. As
mortes omitidas, segundo ele, ocorreram depois do período de observações do
trabalho.
Além das investigações da CPI, é elogiável
que a Procuradoria-Geral de Justiça de São Paulo tenha designado quatro
promotores para compor uma força-tarefa com o objetivo de acompanhar inquérito
policial que tramita no Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa sobre a
aplicação de remédios sem eficácia comprovada.
Escândalo à parte, urge apurar com precisão
os procedimentos adotados em mais um deplorável episódio da pandemia no país.
Eleitor insatisfeito
Folha de S. Paulo
Desconfiança ante as instituições, captada
pelo Datafolha, antecede Bolsonaro
Parece intuitivo associar a queda da
confiança do eleitorado em instituições e atores da democracia, detectada
pelo Datafolha, à pregação populista e autoritária de Jair Bolsonaro. É
preciso cuidado, entretanto, ao estabelecer relações de causa e efeito nesse
caso.
Na comparação com os dados imediatamente
anteriores, de julho de 2019, aumentou a parcela de brasileiros que manifestam
descrédito no Congresso (de 45% para 49%), no Judiciário (de 26% para 31%) e no
Ministério Público (de 23% para 30%). Continua elevada, ademais, a desconfiança
nos partidos, que passou de 58% a 61%.
Mas o desgaste da política e das
instituições começou bem antes —e já foi maior. Em junho do ano eleitoral de
2018, quando a candidatura de Bolsonaro ainda soava a exotismo passageiro,
Congresso (67%) e partidos (68%) amargavam números piores que os de agora,
enquanto Judiciário e Ministério Público repetiam as cifras atuais.
Não é difícil traçar uma linha do tempo e
apontar fatores que contribuíram para esse processo, embora seja impossível
mensurar com precisão a influência de cada um.
O marco mais óbvio são as jornadas de 2013,
quando um protesto contra tarifas de transporte coletivo deram origem a uma
onda de manifestações nacionais, não raro violentas, com as mais diversas
reclamações e reivindicações.
Àquela altura o país já vivia um processo
de deterioração econômica que culminaria na profunda recessão de 2014-16
—período em que o colapso do Orçamento federal levou ao impeachment da petista
Dilma Rousseff, e as revelações e acusações da Lava Jato enlamearam as forças
situacionistas.
Em tal cenário, discursos contrários à
política e às instituições pulularam em todo o espectro ideológico. O PT deu
início à pregação segundo a qual a deposição de Dilma foi um golpe, e a prisão
de Lula, uma conspiração; no arquirrival PSDB, João Doria surgiu em 2016 com
uma plataforma conservadora rasa de conteúdo.
E, claro, houve Bolsonaro.
Ataques à democracia e ascensão de líderes
populistas autoritários não são fenômenos restritos ao Brasil nos últimos anos,
como se sabe —e as causas do fenômeno são objeto de debate global.
Por aqui são evidentes o declínio econômico e social, que ameaça completar uma década, a polarização ideológica que empobrece o debate público e a resistência de políticos e corporações do Estado em abrir mão de privilégios injustificados. Instituições, governantes e legisladores ainda devem respostas à insatisfação do eleitorado.
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