O Estado de S. Paulo
Democratas têm de saber usar a inteligência política para desenhar um caminho unitário
Há muito mais coisas no ar além dos tiranos
de plantão. Eles perturbam porque são um subproduto delas. Sobrevivem porque manipulam
os medos.
A nossa é uma época de transformações
rápidas e profundas, que tumultuam o modo como vivemos. As mudanças fazem com
que tudo pareça solto no ar, como se faltasse um centro de gravidade. As crises
se sucedem, varrendo o que está instituído. É outro capitalismo, outro modo de
trabalhar, outros padrões de família, outra escola, e assim por diante.
Os cidadãos, compreensivelmente, ficam
atônitos. Carecem de referências e portos seguros onde ancorar. Frustrados por
não conseguirem conquistar o que lhes é prometido, afastam-se de governos,
partidos e políticos, responsabilizando-os pelo que não recebem, seja como
direitos, seja como bens e serviços.
O estado de espírito coletivo passa a desconfiar da democracia, muitas vezes atacando-a como desnecessária ou prejudicial. O povo fica contra a democracia, escreveu Yascha Mounk. As pessoas têm raiva e pressa, o sistema democrático é lento e não inclui as grandes massas. As redes sociais canalizam essa miríade de vozes ressentidas. A democracia representativa entra em estado de sofrimento.
Ao mesmo tempo, crescem as lutas por
identidade e reconhecimento, que projetam novos patamares de direitos, mas
também criam mais fragmentação e complicam as unificações necessárias. Os
partidos políticos não sabem como tratar os impulsos identitários, os novos
grupos, temas e expectativas. Abre-se uma rachadura na política, por onde
escapam sentimentos e emoções, que ficam disponíveis. Evapora-se a agenda
reformadora. Os democratas se desorientam, os autoritários ganham terreno.
Todo este processo transcorre
molecularmente, deixando pegadas no chão da vida. Quando menos se espera,
produzem-se estrondos que lançam as pessoas às ruas, como a anunciar rupturas
iminentes. Foi assim em 2013, no Brasil, quando o estrondo polifônico deixou
evidente que nada mais poderia ser pensado como antes. O sistema político,
porém, não ouviu as palavras, não decodificou a mensagem.
Aumentaram, então, as atitudes
“antissistêmicas” radicalizadas, que dizem o que não aceitam sem saber o que pretendem
ou como realizar os desejos. A frustração permanece pulsando e muitos saem em
busca de salvadores, que se agigantam quanto mais se apresentam como portadores
de uma purificação geral. Entram em cena tiranos e autocratas de um novo tipo,
que ora surgem como extremistas, ora como populistas, ora como xamãs prontos
para produzir milagres com suas feitiçarias e beberagens.
Há de tudo entre eles. Tecnocratas,
militares, empresários, cantores, parlamentares inexpressivos. Apresentam-se
como conservadores honestos, tementes a Deus, defensores da família; prometem
recriar a democracia de modo “iliberal”, para que o povo tenha mais voz. Muitos
são caricatos. No início, são tratados com arrogância e subestimados pelos
democratas, que não levam a sério as “narrativas” tecidas para manipular os
descontentes.
Numa articulação global, o extremismo de
direita sai das catacumbas em que se enfurnava para anunciar uma “nova
política”, livre de comunistas, liberais, imigrantes, pobres, refugiados, gente
tratada como detrito.
Os “salvadores” se distinguem pelo
destempero, pelo negacionismo, pela busca de polarizações artificiais com que
procuram manter as sociedades em estado de guerra permanente. Inventam
problemas, criam realidades paralelas nas quais a desordem imperaria, o povo
estaria acuado, clamando por armas e resgate. São líderes sem estofo, péssimos
governantes. Sobrevivem à custa de expedientes bélicos, falseamentos e
mentiras, que despejam incessantemente sobre a opinião pública. Vão, assim,
ocultando sua incompetência e pescando incautos nas águas sujas que derramam na
vida.
No Brasil, em particular, este tipo de
líder tem sua hierarquia. Há muitos chefes, chefetes e militantes, mas somente
um Mito. O movimento se espalha, incorpora elites sem orgulho próprio, vazias
de ambições cívicas. Como um Duce fascista falsificado, o Mito recusa-se a
governar: sua essência é o combate, seu desejo é a ditadura, sua intenção é
criar confusão. Sustenta-se no espanto social, no amorfismo ideológico da
população, na desorientação impulsionada pela desunião dos democratas, no
ativismo boçalizado da extrema-direita. Estigmatiza adversários para assustar
eleitores e ascender.
A pobreza, as desigualdades, o desemprego,
a pandemia, a inflação que retorna complicam sua situação, mas não ajudam a
oposição. A imagem do Mito esfarela.
Há resistência nas instituições (STF, TSE), na grande mídia, nos partidos democráticos, em crescentes setores da sociedade civil. A Câmara dos Deputados, sob pressão, atua com excessivo fisiologismo. Os pesadelos se repetem, noite após noite, à espera do raiar de um novo dia, que virá na medida em que os democratas souberem usar a inteligência política para desenharem o caminho unitário que os projetará como construtores do futuro.
*Professor de Teoria Política da Unesp
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