Valor Econômico
Choque com recuperação de preços em dólares
das matérias primas e forte desvalorização do real está se dissipando
Estamos vivendo um período de aceleração da
inflação ao consumidor como mostra o índice de difusão de mais de 72% no IPCA
de agosto. A complexidade deste processo pode ser identificada pelas constantes
revisões das instituições financeiras a cada divulgação dos números oficiais,
como aconteceu agora com o indicador de agosto.
Esta ciranda teve seu início no terceiro trimestre de 2020 quando, assustados com a ameaça de uma depressão econômica provocada pela pandemia, mercado e Banco Central começaram a reduzir suas previsões para a inflação um ano à frente. Com a aplicação rígida do protocolo seguido pelo BC, o Copom reduziu seguidamente a taxa Selic até 2% ao ano, como mostra parte do texto da Ata da 232ª reunião do Copom de 4 e 5 de agosto:
“No
cenário híbrido, com trajetória para a taxa de juros extraída da pesquisa Focus
e taxa de câmbio constante a R$ 5,20/US$ as projeções de inflação do Copom
situam-se em torno de 1,9% para 2020, 3,0% para 2021 e 3,4% para 2022”.
Mas este cenário assustador começou a ser
questionado ainda em 2020, a partir de uma recuperação da economia mundial
muito mais rápida do que a prevista inicialmente. A maioria dos governos e
Bancos Centrais, rescaldados com a lentidão com que reagiram à crise de 2008,
criaram rapidamente agressivos estímulos monetários e fiscais. Com isto, a
recessão profunda que se previa ficou restrita a um pouco mais de um trimestre
e a recuperação da demanda na grande maioria das economias na virada de 2020 já
voltava aos níveis anteriores à pandemia.
Este cenário não previsto pelas autoridades
econômicas, principalmente Bancos Centrais, acabou por provocar desequilíbrios
importantes entre oferta e demanda em mercados como o da produção de bens de
consumo e, principalmente, no sistema de logística internacional. Na prática, a
demanda adicional criada pela expansão fiscal da ordem de 10% do PIB em
economias de grande porte superou em muito a redução por conta das restrições
de mobilidade social implantadas.
Este fenômeno foi mais forte no caso da
China com uma queda de apenas 4% do PIB no segundo trimestre, e um crescimento
no ano fechado de mais de 2%.
Com este perfil, a recuperação da demanda
chinesa por matérias primas já estava ocorrendo no último trimestre do ano e
provocando uma forte pressão sobre os preços em dólares das principais
commodities agrícolas e metálicas, principalmente em países como o Brasil. No Brasil,
país que se atrasou na definição de um plano consistente de combate à pandemia,
enfrentamos uma vigorosa fuga de capital externo de curto prazo e que chegou a
cerca de US$ 45 bilhões. Como resultado o real sofreu uma desvalorização
superior a 40%, tornando ainda mais deletério o impacto da elevação das
cotações internacionais nos preços internos, principalmente alimentos e
combustíveis.
Outro desequilíbrio não previsto e criado
pela surpresa com este pequeno espasmo de recessão levou a uma crise ainda
desconhecida no funcionamento das cadeias produtivas globalizadas. O
descompasso entre oferta e demanda por conta das reações diferenciadas de
consumidores e empresas produtivas à pandemia criou a escassez de componentes
cruciais, principalmente na indústria e no sistema logístico marítimo.
Alguns exemplos marcantes foram um aumento
dos preços de automóveis usados de mais de 40% em função das limitações da
produção dos novos e nos custos de movimentação de cargas via containers de aço
pelas restrições sanitárias no comércio internacional. Em função destes choques
caminhamos para o último trimestre de 2021 com os índices de preços na porta da
fábrica ainda superando os 9% na China e a quase 7% nos Estados Unidos, níveis
inclusive superiores ao que ocorre no Brasil
Principalmente na indústria, este fenômeno
mundial chegou a nosso país na virada de 2020 para 2021, adicionando um novo
choque externo aos cenários do Copom. Um exemplo claro destas dificuldades foi
revelado nas estatísticas da indústria automobilística do último mês de agosto,
com o estoque de carros zero km da indústria no nível mais baixo de sua
história (13 dias de vendas).
Finalmente no Brasil um último “black swan”
nos atingiu na forma de uma crise hídrica e a necessidade de uma correção discreta
e bem acima dos custos normais de geração de energia elétrica. Mais uma vez os
cenários com que o Copom trabalhava foram afetados de forma não esperada.
Estamos, portanto, diante de um processo
inflacionário complexo e inédito em nossa longa história da busca da
estabilização da nossa moeda. Para lutar o bom combate será preciso um
exercício analítico de nível superior à simples aplicação de protocolos
tradicionais conhecidos e, principalmente, respeito à natureza dos choques
externos que sofremos e à sua linha do tempo.
Os números do IGPM mais recentes mostram
que o choque representado pela recuperação dos preços em dólares das principais
matérias primas em um ambiente de forte desvalorização do real está se
dissipando. Mas ainda temos impactos atrasados principalmente sobre os índices
de varejo como mostrou o IPCA de agosto, com um terço de seu número cheio
correspondendo aos aumentos da gasolina, etanol e energia.
*Luiz Carlos Mendonça de
Barros, engenheiro e economista, é presidente do Conselho da Foton Brasil. Foi
presidente do BNDES e ministro das Comunicações.
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