O Globo / O Estado de S. Paulo
Menino, aprendi que esta seria a maior
palavra da língua portuguesa. Ao crescer, foi curioso constatar que os
“palavrões” eram curtos e careciam de explicação. O
inconstitucionalissimamente, porém, exigia um habitual legalismo — uma tintura
de “classe” — para ser entendido. O pior é vê-lo em prática, ao vivo e em
cores, pelo supremo mandatário da nação!
Para ser inconstitucional, há que,
primeiro, ser constitucional. Mandamentos codificam pecados, mas as redundantes
falsidades políticas são reguladas por Constituições que governam governos.
Num regime de igualdade de todos perante a lei, há também imperativo: a fidelidade ao cargo e ao programa eleitoral. A eleição é um contrato coletivo a cumprir, jamais a sabotar.
Constituir é ordenar. Um leão é símbolo da
realeza porque a realeza precisa do constitucionalismo inato e fixo da fera. Um
rei está para um leão, assim como a altivez e a fidelidade constitucional da
fera estariam para o rei.
Foi Deus inconstitucional quando nos puniu
com o dilúvio? É um caso para teólogos. Bolsonaro não é o primeiro. Pois,
quando um rei trai ou abandona seu reino, como foi o caso da fuga da Corte lusa
para o Brasil, há uma violenta inconstitucionalidade. A fuga de quem
personificava o povo tem consequências práticas, políticas, econômicas,
religiosas e morais — ou melhor, imorais para os portugueses abandonados por
seu sagrado rei.
O palavrão jurídico me fez descobrir que
insultos sem remédio são claros; do mesmo modo que um presidente
constitucionalmente eleito que abusa dos privilégios e do imenso simbolismo do
seu cargo para subvertê-lo em nome de coisa alguma atua
inconstitucionalissimamente.
Bolsonaro, ao fazer cabo de guerra com o
STF e o TSE, produz uma insegurança que, num mundo globalizado, pode arruinar o
Brasil. Tem de ser detido ou banido do papel por — como tenho afirmado aqui —
incapacidade e recusa a desempenhá-lo com o devido respeito e a obrigatória
compostura demandados pelo cargo.
Em sistemas eleitorais meritocráticos e
competitivos, a renúncia à Presidência é um trauma, que vivemos na triste
figura de Jânio Quadros, em 25 de agosto de 1961 — quando eu, moço, realizava
trabalho de campo entre os índios gaviões numa desconhecida Amazônia paraense,
e os ministros militares impediram a posse do vice-presidente João Goulart,
houve um procedimento inconstitucional. Romperam deliberadamente com a
Constituição e introduziram um desvio pela força das armas, abandonando o campo
legal-burocrático. Um “você sabe com quem está falando?” dado contra o Brasil.
O golpe é um desfecho quando dois
princípios entram em choque. Um deles é “constitucional” — se morre o rei, ele
é sucedido por um descendente; se o presidente abdica pela maluquice das
“forças ocultas”, o vice-presidente assume o cargo. Foi exatamente isso que
ocorreu em novembro de 1963, quando John Kennedy foi assassinado. A viela do
golpe é a distorção de um critério constitucional, algo plausível nesta
sociedade em que seguir normas é sinal de inferioridade.
Tal viés é uma sedução para ser o dono
absoluto do poder. E para não aceitar a interdependência de Poderes de natureza
diversa, essa essência do regime republicano. Por isso, corremos o risco de
desmontar a República quando o presidente usa um “você sabe com quem está
falando?” representado pela massa convocada a participar de um teatro de
traição, que, felizmente, virou um blefe.
As reações ao comício golpista do dia 7
foram, digamos, cavalheirescas. Destaco como mais duras as dos ministros Fux e
Barroso, diretamente ofendidos. Barroso, ademais, acentuou tanto a falta de
compostura quanto a irracionalidade que um presidente eleito usa para
desmoralizar o papel que desempenha.
É triste ver tanta gente golpeando um
regime democrático tão duramente conquistado nesta terra de nanobarões.
P.S.: A mediação pessoal, esse ponto-chave
dos sistemas republicano-familísticos, esvaziou — graças ao generoso viés
poético-político do ex-presidente Michel Temer — o mal-estar do comício
golpista. No Brasil, a “ação entre amigos” é, como diria Enylton de Sá Rego, o
emplastro de Brás Cubas...
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