O Globo
O pastiche que se seguiu às sérias e graves
ameaças proferidas por Jair Bolsonaro em cima de dois palanques no 7 de
Setembro não permite que analistas e tomadores de decisões se equivoquem quanto
à natureza golpista do presidente brasileiro, mas é um exemplo lapidar da
ojeriza que ele tem a trabalho, planejamento, estudo e articulação.
Dar um golpe exige afinco, obstinação e
capacidade gerencial. Qualquer que seja a natureza da virada de mesa que fazem
postulantes autoritários de qualquer cepa política, de Putin a Maduro, para
ficar nos atuais, requer que se tenha um plano com começo, meio e fim e um
grupo — militares, políticos, burocratas, ou de preferência todos esses
alinhados — a lhe dar apoio e seguimento.
A quartelada desastrosa de Bolsonaro não
tinha nada disso. Quando Luiz Fux chamou o comandante militar do Planalto à
fala diante da investida de caminhoneiros e outros arruaceiros bolsonaristas em
direção à Praça dos Três Poderes, na noite da véspera das manifestações, já
saiu da conversa com a constatação de que as Forças Armadas não estavam
embarcadas em nenhum roteiro golpista minimamente esquadrinhado. E não estavam
dispostas a avançar aquele sinal.
Da mesma forma, as Polícias Militares, que estão sendo cevadas pelo bolsolavismo à base de lavagem cerebral e promessa de casa própria, também não tinham, àquela altura, um grau de adesão suficiente para fazer com que alguns ou muitos motins estourassem Brasil afora num sinal de alerta para os governadores.
Um antigo aliado que hoje acompanha de
longe os passos claudicantes do governo do capitão testemunha o completo
desinteresse de Bolsonaro por tudo o que exija um mínimo de trabalho.
Lembra que, na campanha, Paulo Guedes
preparava extensos calhamaços de material sobre economia para ele, que
Bolsonaro largava displicentemente em cima da mesa onde estivesse e ia embora
fazendo alguma piada de tio do pavê. Essa rotina segue no governo, vivida por
ministros que tentam, em vão, despachar temas complexos com o chefe.
O presidente do Brasil ocupa sua mente com
o lixo da internet, que tenta proteger revogando marcos legais que impedem sua
propagação e sua monetização, com as obsessões de sempre e com a campanha de
2022. Toda a agenda do governo orbita em torno dessa pauta pobre, que condena o
país à estagnação geral que atravessa, da economia à educação, da saúde às
artes.
Graças à aversão do mito por fazer aquilo
para o que foi eleito em 2018 — ou seja, administrar o país —, mais de 200
milhões de pessoas atravessam dias, semanas, meses atadas a uma discussão
insana de problemas inexistentes enquanto os reais não são encaminhados.
Uma análise acurada da agenda diária de
Bolsonaro dá conta de sua completa inapetência pelas questões de Estado e do
dia a dia do Executivo. Sai do Alvorada calmamente para conversar com os
desocupados que vão lhe puxar o saco no cercadinho, concede entrevistas a
emissoras de rádio sobre os temas distópicos que dominam sua cabeça, despacha
com um ou dois ministros e cedo já volta para casa.
A coisa muda de figura quando pinta alguma
viagem para inaugurar obra ou pelo menos lançar uma placa de obras vindouras,
eventos que o presidente brasileiro gosta de promover para dar a falsa ideia de
que sua gestão tem entregas a fazer.
Não nos esqueçamos, claro, de seu
compromisso mais frequente como presidente. Reuniões ministeriais? Encontros
com a base aliada? Não, não. A tradicional live das quintas-feiras, com direito
a sanfoneiro cafona e muita mentira, com uso de recursos públicos (servidores,
equipamentos, palácio e o que mais vier) para fazer campanha antecipada.
Alguém assim, avesso ao batente, só poderia
achar que bastava subir num caminhão de som para o golpe acontecer. Não foi
assim. Mas que os que tiram sarro dele não se enganem: a incompetência não fará
Bolsonaro desistir do intento golpista. Ele é da sua natureza, assim como a
aversão ao trabalho.
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