O Estado de S. Paulo
Para recuperar a paz que jogou no lixo
Bolsonaro recorreu a Temer, o impopular do Brasil.
Em 8 de setembro, um dia após bolsonaristas terem ocupado ruas do País e sequestrado o verde-amarelo (apud José Murilo de Carvalho), que a soit-disant oposição lhe presenteou, Jair Bolsonaro parodiou a rainha má perguntando ao espelho: “Haverá alguém mais impopular do que eu?”. Sem resposta dela nem dos sete anões, telefonou ao general Augusto Heleno, que questionou o coronel João Baptista Lima, da PM de São Paulo, e obteve a resposta: “Temer”. Batata, retrucaria, se fosse Nélson Rodrigues. De fato, o antecessor bateu recorde de impopularidade em junho de 2018, com 82%. A própria rejeição, também segundo o Datafolha, foi de 51%, em julho de 2021. “Bateu na trave”, suspirou. E ordenou: “Liga pro Michel, tá o.k.?”.
Até aqui é tudo ficção. Como inteirinha
falsa foi a campanha presidencial de 2018, vencida sem que o candidato do PSL
participasse de sequer um debate com adversários e dispusesse de ínfimos
segundos na propaganda eleitoral. Nesta, aliás, apenas mentiu descaradamente e
se comprometeu com o que jamais cumpriria. Absolutamente verdadeiro é que, na
semana em que fez mais uma promessa que não pagaria a Belzebu, o chefe do
Executivo recorreu ao antecessor para pregar outra patranha: a de que não cumpriria
ordens do relator dos processos que pode chamar de seus no Supremo Tribunal
Federal (STF), Alexandre de Moraes. Então, Michel pai ocupou a única cadeira de
um jato da FAB movido a querosene pago pelo deserdado pagador de impostos com a
companhia isolada de uma folha de papel em que Bolsonaro assumiria a versão
presidencial de sua “escolha de Sofia”, com a dúvida sobre que lorota negaria
antes: mandar as ordens da Corte para as cucuias ou atuar dentro de quatro das
inúmeras linhas da Constituição, mandada às favas, juntamente com os
escrúpulos, pelos chefões de todos os Poderes?
Assim, a solidão do ex com a nota das
mesóclises evitadas no colete tornou-se o símbolo de inaceitável desaforo de
dois chefes de Estado, um ex e outro que se prepara para também vir a sê-lo,
cometido contra a bolsa rasgada do cidadão. Mais do que o despoderado feito
escriba da nota de salvação, que o exibiu à patuleia, uma vez mais humilhada,
sua súbita, surpreendente, inesperada e inusitada tarefa de socorrista das
instituições é o retrato do escabroso descaso dos homens públicos em relação ao
público propriamente dito. A expressão deve ser entendida, pois, como metáfora
da que define a profissão mais antiga... Ou seja, o detentor teórico e retórico
do poder é a ficção mais absurda. A menos que o verbo constitucional emanar
seja uma peça de péssimo gosto do despudor de políticos como o senador Marcos
Rogério, arauto de negociatas de vacinas na CPI da Covid.
O povo, que não apoiou Bolsonaro no dia 7,
ao contrário do que apregoam seus bajuladores, deu uma notória banana a quem
convocou atos pelo impeachment do mandrião, cuja maior mentira é afirmar que
governa o Brasil. Mas ainda não trabalhou um segundo sequer no emprego mais
importante da república do faz de conta. E confessa com a maior caradura ao
repetir que nada tem que ver com quase 600 mil mortos pela covid-19, 14 milhões
de desempregados, a fome dos deserdados, a inflação de dois dígitos, a crise
hídrica (negando-se até a alertar). Numa metáfora macabra do número sete, segundo
o vulgo conta de mentiroso: o tudo que virou nada no Dia da Independência, o
preço da gasolina na bomba, o aumento de 7% do gás de cozinha, etc.
Já é hora, pois, de substituir o lema
“ordem e progresso” da bandeira positivista da República pelo “me engana que eu
gosto” do autogolpismo negacionista e negocionista atual. Como relatou com
simplicidade e sabedoria o filósofo e economista Eduardo Giannetti da Fonseca
no clássico Autoengano. E explicou com profunda clareza na entrevista que
reproduzo no Blog do Nêumanne no portal do Estadão. “Bolsonaro promete
descumprir ordens judiciais, mas não as descumpre na prática”. Ou seja: ruge
como o leão da MGM, mas age como o ratinho esperto Jerry, escondido no buraco
pelo qual não passa o gato Tom.
O capitão-terrorista prepara-se para
superar todos os futuros colegas ex-presidentes quando passar o bastão adiante
em violação da compostura do cargo máximo. Fernando Henrique atua como peru de
pôquer, dando palpite sem assumir responsabilidade. Lula disputará a Presidência
atropelando as fartas provas de sua atuação no maior escândalo de corrupção da
História. Dilma beijará a mão do ex-chefe após levar uma surra vergonhosa na
eleição ilícita que disputou para o Senado em Minas mercê de mimo do então
presidente do STF, Ricardo Lewandowski.
E Temer patrocinou o conchavo sigiloso ao
telefone entre o indiciado em quatro processos do STF e um no Tribunal Superior
Eleitoral (TSE) e o relator deles, Alexandre de Moraes. Cúmplice da decisão
espúria de parcialidade do ex-juiz Sergio Moro, acusado de conversar com
procuradores. Mas demolidores do óbvio ainda chamam a tríplice aliança
telefônica de “diálogo entre Poderes”. Que só pode ter sido, se tanto, um
acerto obsceno entre campeões do cinismo implícito.
*Jornalista, poeta e escritor
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