EDITORIAIS
Para sua plateia
Folha de S. Paulo
Isolado, Bolsonaro usa caneta presidencial
para agradar às minorias que o apoiam
O expediente da edição abusiva de medidas
provisórias pelo Executivo tem uma longa e inglória história no Brasil moderno.
Jair Bolsonaro o reativou, adicionando a propensão à balbúrdia estéril já
comprovada em seu desgoverno.
Assim, MPs são enviadas ao Congresso mesmo
quando há a certeza de que serão deixadas para caducar. O que importa é alguma
sinalização do mandatário a suas bases de apoio mais fiéis.
A prática chegou ao paroxismo nestas
semanas de tensão institucional. Na véspera do ensaio golpista do 7 de
Setembro, Bolsonaro baixou medida para alterar o Marco Civil da Internet,
numa proposta de
casuísmo escandaloso.
Conforme o texto, redes sociais não podem
remover postagens a partir de seus próprios critérios. O objeto é o de
proteger, por óbvio, a inundação de fake news e pregação autoritária no feriado
e depois.
O presidente já teve publicações mentirosas bloqueadas e viu o impacto gerado pelas providências tomadas contra seu modelo, o americano Donald Trump.
No Brasil, a celeridade de ações contra
bolsonaristas no âmbito de inquérito no Supremo Tribunal Federal adicionou urgência,
na ótica peculiar do Planalto, ao assunto. Tudo sob um falso verniz de defesa
da liberdade de expressão.
Felizmente, houve reação do Congresso, que
decidiu devolver o texto, e mesmo a complacente Procuradoria-Geral da União indicou
ao Supremo que a MP deveria ser suspensa enquanto seu mérito
estivesse em análise.
Mas Bolsonaro não para. Na segunda
(13), editou MP garantindo R$ 100 milhões para que policiais
com renda até R$ 7.000 mensais tenham acesso a financiamentos habitacionais com
juros favoráveis.
Depois das milícias digitais, foi a vez de
agradar as franjas das forças de segurança, as quais o presidente busca
subverter em favor de seu governo sempre que pode.
Ambos os movimentos demonstram a miopia que
aflige o Planalto, preocupado apenas em manter viva a chama de apoio de uma
claque minoritária. No caso dos policiais, isso ocorre após ter tido
dificuldades para explicar o recuo público em seu embate com o Supremo.
Como se vê, o governo continua refém de
caprichos dissociados das necessidades da população, exibidos por um presidente
que vê uma reeleição em 2022 complicar-se.
Parcos lampejos de lucidez —como a
tentativa de ampliar o Bolsa Família, por eleitoreira que seja— se perdem em
meio à desordem política e gerencial que semeia a desconfiança na gestão
orçamentária e envenena a economia.
Lula e a economia
Folha de S. Paulo
Idas e vindas suscitam enormes incertezas
quanto a plano do PT numa área vital
Em entrevista
à Folha, o economista Edmar Bacha apontou que Jair Bolsonaro
representa um risco para a democracia, e Luiz Inácio Lula da Silva, para a
economia do país. Rebatido em artigo dos
petistas Aloizio Mercadante e Guilherme Mello, Bacha decerto tocou
em um ponto sensível para o partido.
Não sem muita resistência interna, o PT
abraçou a racionalidade econômica na campanha presidencial de 2002, com a
célebre “Carta ao Povo Brasileiro”, e na maior parte dos dois mandatos de Lula,
quando foram mantidos o equilíbrio orçamentário, o controle da inflação e o
respeito aos contratos.
É curioso que a mitologia petista
amplifique os feitos daquele período —aceleração do crescimento, redução da
pobreza, acúmulo de reservas em dólar— sem destacar que a agenda de então
incluía reforma da Previdência, superávits orçamentários e autonomia de fato do
Banco Central.
O partido prefere louvar políticas que
começaram a ser adotadas ainda sob Lula e marcaram o governo Dilma Rousseff,
como o relaxamento da austeridade fiscal (que se fez acompanhar de embustes
orçamentários), a distribuição de subsídios e o intervencionismo.
Nesse caso, omitem-se os resultados
catastróficos obtidos, ou estes são atribuídos a razões outras. Tergiversa-se
ainda sobre a tardia e atabalhoada tentativa de correção de rumos no segundo e
inconcluso mandato dilmista.
Seria também desonesto, claro, atribuir
todos os êxitos de Lula à agenda liberal, e o fracasso de Dilma apenas ao
estatismo —o ambiente internacional, para ficar no exemplo mais importante,
ajudou o primeiro e prejudicou a segunda.
A questão é outra: todo esse histórico de
idas e vindas suscita enormes incertezas sobre como um novo governo do partido
trataria a área de impacto mais imediato no bem-estar da sociedade.
O PT parece apostar mais uma vez na
ambiguidade. Acena com moderação e pragmatismo a setores políticos e
empresariais, enquanto mantém as velhas promessas às bases ideológicas e
corporativistas. Por mais habilidoso que já tenha se mostrado seu líder, esse
será um equilibrismo difícil.
A situação orçamentária do governo é hoje
muito mais grave que a de duas décadas atrás, em grande parte devido à gestão
Dilma. A precária estabilidade dos últimos anos depende da confiança em um
programa gradual de ajuste dos gastos e controle da dívida pública.
Como bem sabe o presidenciável petista, em economia as consequências não esperam os fatos —bastam as expectativas.
STF tem de deter armamentismo de Bolsonaro
O Globo
A tentativa de pacificação entre o
presidente Jair Bolsonaro e o Supremo Tribunal Federal (STF), encetada pela
nota de recuo depois dos discursos golpistas da semana passada, será testada a
partir da próxima sexta-feira, quando começa o julgamento, no plenário virtual,
de quatro decretos de Bolsonaro que flexibilizam a posse e o porte de armas.
Um dia depois do 7 de Setembro, o ministro
Alexandre de Moraes, principal alvo dos ataques de Bolsonaro, devolveu ao
plenário os processos cujo julgamento suspendera para análise. A causa em
questão é uma das principais bandeiras de Bolsonaro, que insiste em armar a
população — um despautério.
Nos decretos, Bolsonaro retira do Exército
o controle sobre munições, permite a compra de até seis armas de fogo por
civis, autoriza o porte de duas armas por cidadão, dispensa atiradores amadores
de credenciamento na polícia e de permissão do Exército, autoriza-os a portar
armas carregadas, aumenta o limite de munições que podem comprar e permite a
adolescentes de mais de 14 anos praticar tiro esportivo. Tudo isso foi suspenso
pela liminar da ministra Rosa Weber, que considerou os dispositivos mais
absurdos dos decretos incompatíveis com o Estatuto do Desarmamento de 2003. O
plenário tem o dever de referendá-la.
A política armamentista de Bolsonaro tem
contribuído para a proliferação da artilharia no país e a consequente piora nos
indicadores de violência. Pelos últimos dados do Fórum Brasileiro de Segurança
Pública, as armas de fogo registradas no Brasil dobraram desde que ele assumiu
o poder — de 638 mil em 2017 para 1,3 milhão em 2020. Entre 2019 e 2020, os
civis com direito a posse de armas foram de 200 mil a 287 mil. Isso antes mesmo
dos decretos de flexibilização, editados em fevereiro.
No mesmo período, as mortes violentas
cresceram 4%. O percentual de mortes por armas de fogo subiu de 72,5% para 78%.
Embora a coincidência de números seja insuficiente para demonstrar relação de
causa e efeito, há vasta literatura acadêmica comprovando a influência positiva
do desarmamento nos indicadores de violência, inclusive no Brasil, onde o
Estatuto do Desarmamento é considerado um dos principais fatores responsáveis
pela queda nos homicídios neste século.
O argumento de que é preciso facilitar o
acesso às armas para que os cidadãos tenham como se defender tem tanta base
quanto tratar a Covid-19 com cloroquina. Não passa de ignorância. Haver mais
armas em circulação equivale a haver mais armas nas mãos de bandidos. Se já é
difícil controlar armas do Exército e da polícia, que dizer daquelas em poder
de civis?
Levantamento revelado pelo GLOBO mostrou
que, entre 2010 e 2020, 23 crimes e chacinas (entre eles o assassinato de
Marielle Franco) foram cometidos com munição militar. Só de um quartel da PM no
Centro do Rio sumiram 762 revólveres e submetralhadoras em 2017, vários depois
apreendidos com traficantes. Outra reportagem do GLOBO revelou que 12.555 armas
de fogo de empresas de segurança privada desapareceram, indo provavelmente
parar nas mãos de milicianos, traficantes ou organizações criminosas.
Fatos assim exigem uma resposta firme do
STF, uma decisão capaz de impor os limites da lei ao armamentismo de Bolsonaro.
Seria absurdo se o Supremo sacrificasse a segurança pública apenas para ensaiar
um aceno ao presidente que se faz de arrependido.
Argentinos dão nas urnas recado ao
peronismo intervencionista
O Globo
Os eleitores argentinos provocaram um
terremoto na política local no último final de semana. Ainda levará tempo para
avaliar a extensão das consequências. Computados os votos nas primárias
realizadas no domingo, a aliança liberal Juntos pela Mudança obteve 40%. Os
peronistas do presidente Alberto Fernández e da vice Cristina Kirchner, apenas
31%.
Nas primárias, os eleitores foram às urnas
para definir os candidatos que concorrerão no pleito de 14 de novembro, quando
serão eleitos deputados federais e senadores. Por serem obrigatórias, costumam
fornecer a melhor tradução dos humores do eleitorado. Mantida essa tendência,
os governistas poderão perder seis senadores (e o controle do Senado), além de
nove deputados.
É verdade que Brasil e Argentina são países
bem diferentes, tanto em composição da população quanto na economia. O Brasil
tem o quíntuplo de habitantes e uma economia mais complexa, equivalente ao
triplo do país vizinho. Na Argentina, é maior a proporção da população com
ensino médio ou superior completos. Os índices de pobreza e desigualdade são
significativamente menores. Ainda assim, comparações entre os dois países no
campo político podem ser pedagógicas.
Depois de, como o PT, governar o país por
12 anos e meio com Néstor e Cristina Kirchner, os peronistas — ou a versão
kirchnerista do peronismo — perderam as eleições presidenciais de 2015. Para a
sorte dos argentinos, o vencedor não foi um populista de extrema direita
obcecado em enfraquecer a democracia, mas um liberal chamado Mauricio Macri.
Infelizmente, ele cometeu erros graves na condução da economia e foi incapaz de
reverter o caos que herdou. Os peronistas voltaram ao poder em 2019, com
Fernández e Cristina de vice. Em vez de autocrítica, o que se viu foi soberba.
Pelos vencedores, o retorno à Casa Rosada
foi visto como uma “correção histórica”, uma “confirmação popular” do ideário
nacional-desenvolvimentista que costuma resultar no capitalismo de compadrio e
no patrimonialismo que os brasileiros conhecem tão bem.
O que se seguiu foi uma repetição do
passado: intervenção em exportações para tentar garantir o abastecimento
doméstico, controle do câmbio, taxas de inflação na casa dos 40%, investidores
locais e estrangeiros reticentes e uma economia em frangalhos. Antes do
coronavírus, o país já estava em recessão. A queda do PIB no ano passado foi de
10%. A gestão da pandemia não passou imune às controvérsias.
É bem possível que os governistas vençam a
eleição de novembro. Mas seria bom para os argentinos que a reviravolta vista
no domingo representasse uma tomada de consciência, um sinal de que, apesar de
todos os erros cometidos por Macri, eles entendem que o país precisa de um
caminho alternativo. Voltar ao modelo fracassado do passado não fez bem para a
Argentina — assim como não faria bem ao Brasil.
Senado não admite a MP sobre fake news de
Bolsonaro
Valor Econômico
A adoção de critérios transparentes para
vedação e retirada de conteúdo por parte das redes é uma peça necessária ainda
em falta
O Senado, seguindo pressupostos democráticos
e preceitos legais, devolveu a medida provisória que estabelecia obstáculos
para que as fake news fossem removidas das redes sociais. Antes, a Procuradoria
Geral da República já havia pedido ao Supremo Tribunal Federal que suspendesse
os efeitos da MP. Ela foi assinada pelo presidente Jair Bolsonaro às vésperas
das manifestações contra a democracia no dia 7 de setembro e a ocasião e a
intenção diziam tudo sobre o objetivo da peça legal. De cara, a medida não
atendia ao requisito de “urgência” necessário, salvo talvez para seus autores
no Planalto.
A MP mudava artigos do Marco Civil da
Internet, de abril de 2014, gestado longamente em abertas discussões com o
Judiciário, o Congresso, empresas, especialistas e organizações da sociedade
civil. Os motivos para as mudanças abruptas patrocinadas pelo presidente da
República eram óbvios. Parte das redes bolsonaristas que espalham ódios e
mentiras nas plataformas de internet já estão sendo desbaratadas nas
investigações abertas pelo STF. Alguns blogueiros em evidência da extrema
direita sofreram sanções legais, assim como apologistas da violência
partidários de Bolsonaro, como o atrabiliário Roberto Jefferson, presidente do
PTB.
Ainda que não pudesse interferir nos
inquéritos em andamento do Supremo, nem em seu condutor, o ministro Alexandre
de Moraes, a MP do Planalto buscava dar salvo conduto a fake news,
travestindo-as nas roupas maleáveis do direito de expressão. Por isso a MP
queria impedir que as redes sociais promovessem censura de “ordem política, ideológica,
científica, artística ou religiosa”.
Pela porta dos fundos de uma MP apressada,
o Planalto tentou legislar sobre a liberdade de expressão, o que não lhe
compete, e definir quais conteúdos poderiam ou não ser objeto de remoção das
redes sociais. Se o cortejo de infâmias bolsonaristas que invade a internet não
pudesse ser coibido, ele assumiria, de certa forma, algum ar de legalidade. A
interpretação do STF sobre as fake news vai em direção completamente diferente.
A MP dava 30 dias para que as redes se adequassem às novas disposições, cuja
infração teria penalidades de até 10% do faturamento das empresas responsáveis
pela remoção indevida.
Além disso, as regras criadas com validade
imediata só atingiriam pessoa jurídica que “exerça atividade com fins econômicos
e de forma organizada, mediante a oferta de serviços ao público brasileiro com,
no mínimo, dez milhões de usuários registrados no país”. Isto é, grande parte
do submundo das comunicações bolsonaristas poderia ignorar a determinação
legal.
Desde pelo menos as eleições de Donald
Trump que as redes sociais, e com elas as fake news, se tornaram atores de
primeira grandeza nas disputas eleitorais. Com baixos recursos de campanha, foi
a hábil utilização dessa mídia que supriu quase que inteiramente a carência de
recursos da candidatura de Jair Bolsonaro à Presidência. É óbvio que não fez
milagre: a rejeição a Lula (que não pôde concorrer) foi vital para o resultado.
Como presidente, e com imensos poderes nas mãos, Bolsonaro pretende multiplicar
a dose na campanha de reeleição.
Vários partidos moveram ações no Supremo
contra a MP e o último tiro nela desferido veio de Augusto Aras, procurador
geral da República, que pediu a suspensão de seus efeitos até uma decisão
definitiva do STF. Ele caracterizou o objeto da MP como “um dos mais complexos
do atual estágio dos direitos e garantias fundamentais” - o desafio é mundial -
e apontou corretamente que a alteração repentina criaria “insegurança
jurídica”.
Por tudo isso o Senado resolveu devolver a
MP - e também porque tem algo melhor a oferecer. Recentemente aprovou o PL 2630
(Lei de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet), já enviado à
Câmara. Ele estabelece exclusão de contas falsas, reduz o número de contas
vinculadas a uma empresa, proíbe disparos de mensagens em massa por robôs, a
existência de robôs não identificados e dispõe que todos os conteúdos pagos
terão de ser identificados.
Restam os poderosos donos das ágoras digitais, as redes sociais, que têm se movido lentamente sob pressão para a moderação dos conteúdos e das iniciativas de regulação, para que sejam responsáveis pelo que propagam os espaços que põem à disposição dos usuários. A adoção de critérios transparentes para proibição e retirada de conteúdo é peça necessária, ainda em falta, para que prevaleça um clima de igualdade e transparência na disputa eleitoral de 2022.
Polícia política
O Estado de S. Paulo
Ao mesmo tempo que acena à moderação, Bolsonaro urde novo ataque à democracia. Por meio de prepostos na Câmara, quer fazer avançar projeto que altera a Lei Antiterrorismo
O presidente Jair Bolsonaro pode assumir
tantos compromissos de pacificação nacional e de respeito aos pilares do Estado
Democrático de Direito quanto julgar necessários à acomodação de seus
interesses políticos mais imediatos. Convencerá apenas os que já têm a
predisposição de serem convencidos, seja por interesse, seja por ingenuidade. A
verdade, todavia, é que, por trás das encenações de um republicanismo que
jamais houve em sua trajetória, ao fim e ao cabo, prevalecerá sempre a índole
liberticida do presidente da República. Bolsonaro, como a Nação tristemente
acompanha, nutre visceral desprezo pela democracia e por tudo o que o regime da
liberdade representa.
Ao mesmo tempo que acena à moderação,
Bolsonaro urde um novo ataque à democracia na Câmara dos Deputados. Por meio de
prepostos na Casa, o presidente quer fazer avançar um projeto de lei que altera
a Lei Antiterrorismo, de 2016. O desiderato é o mais perigoso possível. Não há
razão para alterar a legislação de combate ao terrorismo no País neste momento.
A Polícia Federal (PF) já dispõe de respaldo legal e de recursos humanos e
materiais para lidar com este tipo de ameaça. Nestes cinco anos de vigência da
lei, a PF já realizou operações que levaram à condenação de 11 pessoas pela
prática de atos classificados como terroristas. Ou seja, o que se pretende é
tirar poder de um órgão de Estado e atribuí-lo a uma esfera de governo,
especificamente a Presidência da República.
O que Bolsonaro pretende, portanto, é criar
uma polícia secreta que possa controlar e, com isso, impedir a livre
manifestação das forças políticas de oposição a seu governo. Se não conta com
as Forças Armadas nem com as Polícias Militares para concretizar seus
propósitos golpistas, o presidente agora almeja a criação de uma polícia
política.
O projeto de revisão da Lei Antiterrorismo,
de autoria do deputado Major Vitor Hugo (PSL-GO), fiel escudeiro de Bolsonaro
na Câmara, cria a Autoridade Nacional Contraterrorista (ANC), que terá acesso
irrestrito a informações sobre qualquer cidadão ou empresa que desejar.
Prevê-se que a ANC seja chefiada por um policial e por um militar, ambos
diretamente subordinados ao presidente da República.
Além de contarem com liberdade absoluta
para escrutinar a vida de cidadãos que, em tese, sejam suspeitos de
envolvimento em “ato que, embora não tipificado como terrorismo, seja perigoso
para a vida humana”, os agentes da ANC, caso a proposta avance, terão prévia
autorização para matar no exercício da função, pois o projeto de lei prevê o
chamado excludente de ilicitude a fim de “resguardar” a atuação dos agentes.
O projeto é um despautério. Consta que há
votos suficientes para aprovação na comissão especial que trata da matéria na
Câmara, mas, para o bem da democracia no País, não deve passar desta etapa
legislativa.
Tal como foi concebido, o projeto, além de
tudo, fere o pacto federativo insculpido na Constituição. As ações de segurança
pública, tanto preventivas como reativas, são de responsabilidade dos Estados.
Por óbvio, isso não quer dizer que não seja necessária, em casos pontuais, a
coordenação federal no âmbito da União, mas já há leis que tratam destes casos.
Uma das mais importantes, a que criou o Sistema Único de Segurança Pública,
durante o governo de Michel Temer, foi solenemente ignorada por Bolsonaro.
“O temor é que a ANC seja um instrumento de
polícia política do presidente da República”, alertou o líder da oposição na
Câmara, deputado Alessandro Molon (PSB-RJ). O justo receio de Molon é
compartilhado por juristas e especialistas em segurança pública que veem no
projeto uma clara ameaça à democracia. As tipificações dos crimes previstos no
projeto colidem propositalmente com a boa técnica legislativa, descrevendo
ações de forma vaga e ampla, o que abre perigoso espaço para interpretações que
caibam sob medida na sanha persecutória dos tiranetes de turno contra seus
opositores.
O Brasil padece de muitas mazelas. O
terrorismo não é uma delas e oxalá jamais venha a ser. Mas, se vier, não deve
ser enfrentado com instrumentos como este esdrúxulo projeto de lei, que se
presta a objetivos tenebrosos.
Uma mistura tóxica
O Estado de S. Paulo
O risco de estagnação, de inflação e de medidas populistas escurece o cenário de 2022
Com a mistura de tensão política, crise
hídrica, incerteza eleitoral, inflação em alta, produção emperrada e novas
pressões internacionais, o poder federal terá de fazer um esforço incomum para
evitar a estagflação em 2022. Diante do novo perigo, o presidente Jair
Bolsonaro poderá mais uma vez ampliar seu vocabulário, indagando a algum
assessor o sentido da palavra “estagflação”. Também poderá pedir auxílio por
alguma rede social, como fez em 2019, quando perguntou o significado de “golden
shower”.
A combinação de baixo crescimento e
inflação elevada é preocupação corrente no mercado. Essa preocupação foi
reforçada pelos dados do segundo trimestre, quando o Produto Interno Bruto
(PIB) diminuiu 0,1%, pela fraca evolução dos negócios nos meses seguintes e
pela intensificação da alta de preços. Por enquanto, a economia se recupera da
retração de 2020, quando a atividade foi severamente prejudicada pela pandemia.
“Quando essa energia da recuperação da
atividade reprimida se exaurir, tenho quase certeza de que voltaremos ao
crescimento medíocre de antes”, disse o chefe de pesquisa macroeconômica do
Banco Goldman Sachs para a América Latina, Alberto Ramos, citado
no Estado. O Plano Real ficou incompleto e desde os anos 1990 o Brasil tem
experimentado baixo crescimento e inflação superior aos padrões de outros
países, lembrou o economista Luiz Roberto Cunha, professor da PUC-Rio, mencionado
na mesma reportagem.
Mas o quadro, pode-se acrescentar,
agravou-se há alguns anos. Depois da recessão de 2015-2016, a recuperação
começou com taxas inferiores a 2% em 2017 e 2018 e desempenho ainda mais fraco
em 2019 e no começo de 2020, antes da pandemia. A retomada, a partir de maio do
ano passado, tem propiciado apenas a reposição das maiores perdas, sem sinais
de dinamismo. A isso se acrescentou uma acelerada alta de preços, com efeito
acumulado de 9,68% nos 12 meses até agosto.
A inflação tem refletido fatores externos e
internos, como as cotações internacionais dos alimentos e dos minérios,
incluído o petróleo, e os danos causados pela estiagem, como as perdas
agropecuárias e a redução da energia hidrelétrica. Já se considera muito
provável o prolongamento, em 2022, dos efeitos da crise hídrica.
Outros países também têm sido afetados
pelas cotações internacionais e, em alguns casos, por problemas meteorológicos,
mas suas taxas de inflação permanecem inferiores às do Brasil. De modo geral,
suas moedas também têm sido menos desvalorizadas que o real em relação ao
dólar. Esse detalhe – o câmbio – tem sido um componente constante da inflação
brasileira. O preço do dólar tem permanecido muito alto, embora o País disponha
de um bom volume de reservas internacionais e de contas externas em ordem. A
instabilidade cambial é atribuível, claramente, à insegurança política e
econômica gerada pelo presidente Jair Bolsonaro e pelas incertezas sobre a
evolução das contas públicas.
A maior demanda global de petróleo, prevista
para o próximo ano, também poderá impactar os preços. A demanda total deve
atingir 100,8 milhões de barris diários, retornando ao nível pré-pandemia,
segundo estimativa da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep).
A economia global, de acordo com a Opep,
deve crescer 5,6% neste ano e 4,2% no próximo. No caso do Brasil as previsões
indicam 4,7% em 2021 (4,2% na estimativa anterior) e 2,5% em 2022.
Ao elevar a estimativa do desempenho do
País em 2021 os economistas da Opep se mantiveram bem mais otimistas do que
seus colegas brasileiros. No Brasil, as projeções do mercado apontam
crescimento econômico de 5,04% em 2021 (5,28% quatro semanas antes) e de 1,72%
em 2021. As previsões de inflação chegaram a 8% para este ano e 4,03% para o
próximo. Com isso, os juros básicos esperados para dezembro chegaram a 8%, taxa
prevista para durar um ano. A alta de juros, aplicada internacionalmente contra
a inflação, será um obstáculo a mais ao crescimento econômico. Falta juntar a
esse quadro toda a instabilidade associada a um ano de eleições.
Debacle peronista
O Estado de S. Paulo
Os argentinos mostraram nas urnas que estão fartos do autoritarismo populista
A dois meses das eleições legislativas na
Argentina, a coalizão do governo peronista foi atropelada nas eleições
primárias, que fazem a triagem dos candidatos mais competitivos. “Algo não
fizemos bem para que o povo não nos acompanhasse”, admitiu o presidente Alberto
Fernández, “e todos escutamos o veredicto.” Isso é inequívoco. Precisariam ser
surdos para não escutar. Bem menos claro é se o governo compreendeu todo o mal
que fez e qual caminho trilhará.
As primárias consolidaram as duas grandes
coalizões que dominam a Argentina desde a redemocratização. No polo governista,
a Frente de Todos aglutina o peronismo progressista (dominado pelo
kirchnerismo) e outros movimentos de esquerda. Na oposição, Juntos por el
Cambio reúne dos liberais aos peronistas de direita até os social-democratas.
As primárias foram uma espécie de
plebiscito sobre o governo. Os 31% de votos da Frente marcam um tombo de 17
pontos em relação às eleições presidenciais de 2019. Os governistas perderam em
18 dos 24 distritos do país, incluindo Buenos Aires, um histórico bastião
peronista, responsável por 40% dos votos nacionais. Foi a pior eleição da
história do peronismo.
Já o Juntos, com 40% dos votos, teve sua
maior vitória desde que foi formado, em 2015, para as eleições que levaram
Mauricio Macri à presidência. Além de reter províncias tradicionais, a oposição
levou outras tradicionalmente refratárias à direita, tomando ao peronismo o
controle do interior, a fonte de seu poder.
A se confirmarem esses resultados nas
eleições de novembro, que renovarão metade da Câmara e um terço do Senado, os
peronistas, que já não tinham maioria na Câmara, perderão para a oposição a
maior bancada. Mais catastrófica será a perda da maioria no Senado.
Os fatores econômicos pesaram. Fernández
herdou de Macri a crise que frustrou a reeleição deste, mas fracassou em
entregar suas promessas. Em dois anos de governo, foram criados 18 impostos; a
inflação anual subiu para 50%; os salários se deterioraram; o desemprego
cresceu – assim como a fuga de cérebros e de capital –; e, após um tombo de 10%
em 2020, a economia deve crescer apenas 6,4% em 2021.
Pesou também a gestão da pandemia. A
economia foi devastada por um longo lockdown – com um ano e meio sem aulas
presenciais –, mas isso não impediu que o país tivesse um dos piores índices de
mortes do mundo. Some-se a isso o atraso na imunização, o rechaço às vacinas
dos EUA e escândalos como as “vacinas VIP” para os amigos do poder e as festas
clandestinas do presidente violando sua própria quarentena.
Acima de tudo, as urnas manifestaram uma
condenação ao autoritarismo peronista, materializado em um governo subordinado
aos interesses da vice-presidente Cristina Kirchner, que, como lembrou o
jornal La Nación, resultou no impulso oficial à impunidade de
ex-funcionários processados ou condenados por corrupção; no afã por driblar a
Justiça; na indiferença cúmplice com o narcotráfico; e em uma política exterior
aliada às ditaduras da Venezuela, Cuba e Nicarágua.
O governo precisará escolher entre dobrar a
aposta ou fazer um giro de 180°. Neste último caso, pode buscar consensos com a
oposição, cuja vitória reflete não tanto um apoio incondicional da população
quanto um castigo aos incumbentes. A insatisfação com o establishment político
é ainda mais clara ante a ascensão inédita de um candidato de extrema direita:
Javier Milei, apoiador de Jair Bolsonaro e Donald Trump, que levou 14% dos
votos na capital.
Mas, dado o caráter da real dona do poder,
Cristina Kirchner, é provável que a Frente parta para a mesma radicalização
empregada nas eleições de metade do mandato de 2009, 2013 e 2017, e que lhe
custou a derrota em todas elas. Isso implicará rachas com os correligionários
de Fernández, mais intervenções na economia e possivelmente a impressão de
dinheiro para abastecer orgias de gastos.
As eleições na Argentina servem para lembrar uma lição – que o Brasil tem custado a aprender pelo menos desde 2002 –: o populismo é ótimo para ganhar votos, mas péssimo para governar.
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