O Globo
Estado tem que usar toda sua força e poder
para evitar que pessoas morram de fome
O Estado tem
que usar toda sua força e poder para evitar que pessoas morram de fome. Hoje,
19 milhões de cidadãos nacionais passam fome, de acordo com levantamento da Rede
Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional. Em
casos extremos, até mesmo furar teto de gastos definido por lei deve ser
permitido de modo que os famintos possam receber dinheiro para comprar comida.
Mais da metade dos brasileiros, 116 milhões para ser mais exato, passam por
algum tipo de insegurança alimentar. E é claro que isso é inadmissível.
A fome se
caracteriza pela ausência do consumo de proteínas, vitaminas, sais minerais e
glicose. Na sua primeira fase, o organismo humano busca fontes alternativas de
energia armazenada para sobreviver. Em seguida, passa a subtrair tecido adiposo
ou gorduroso e depois consome músculos para manter os órgãos funcionando. Sem
fontes renovadas de energia, o cérebro perde funções fundamentais de comando,
com prejuízos para o raciocínio. No estágio final, o metabolismo passa a
funcionar muito lentamente até parar.
O problema é igual para
todos os que passam fome, mas é mais dramático para as crianças. Se submetidas
por tempo prolongado à insegurança alimentar, além de perder massa muscular, os
mais jovens sofrerão desaceleração e até interrupção do crescimento, depressão,
anemia, raquitismo, baixa imunidade e incapacitação cognitiva. Com a redução da
capacidade de manter a atenção, o prejuízo para a memória e o aprendizado é
imediato. Com isso, as crianças brasileiras pobres e famintas, que já perderam
mais do que as outras em razão da pandemia, estão sendo condenadas a um futuro
ainda mais duro e miserável. Isso se para elas futuro houver.
As imagens da fome no Brasil, que tinham sumido do noticiário, voltaram com pessoas comprando carne de segunda nos açougues. Depois, comprando pés de galinha e ossos com alguma carne. Em seguida, com gente buscando carcaças de animais em portas de frigoríficos e, finalmente, vasculhando caminhões de lixo. O número de pessoas com fome no Brasil subiu de 10,3 milhões para 19,1 milhões em quatro anos. Significa aumento de 85%, quase todo ele medido nos três primeiros anos do governo de Jair Bolsonaro.
Estamos claramente
diante de um caso extremo que justificaria em qualquer lugar do mundo furar
teto de gastos. Isso, claro, se não houvesse fontes alternativas de recursos.
Estas não apenas existem, elas abundam. Num Orçamento de mais de R$ 1 trilhão,
os R$ 30 bilhões para atender a emergência podem ser deslocados de diversos
pontos, mas sobretudo dos aportes abusivos conhecidos como emendas
parlamentares. Apenas as emendas do relator do Orçamento somam R$ 20 bilhões,
ou mais de 60% do necessário para aplacar a fome de 19 milhões.
Evidentemente que não vai
se mexer nas emendas. Elas servem para alavancar candidaturas em ano eleitoral
e garantem apoio parlamentar ao presidente da República, como se o dinheiro do
Orçamento da União fosse dele. O senador Jorge Kajuru explicou ontem à revista
“Crusoé” como a banda toca. Ele denunciou o líder do governo no Senado, Eduardo
Gomes, por ter lhe oferecido R$ 100 milhões em emendas se ele parasse de bater
no governo.
Como não se consegue reduzir as
emendas, poderia se cortar alguns gastos militares, os únicos que aumentaram
injustificadamente no governo Bolsonaro, em benefício de quem tem fome. Mas
alguém acha que o capitão marchará por aí? O governo poderia ainda negociar
como contrapartida projetos consistentes de reforma administrativa e tributária
e um programa de privatizações em áreas onde a presença do Estado só seja
necessária na regulação. Como não tem credibilidade para tanto, o governo tenta
construir uma saída para a emergência atual criando emergências futuras. Serão
os mais pobres que pagarão a conta dos erros de agora. Com mais fome.
RESPONSABILIDADE
Somente um governo sério e comprometido com
o equilíbrio fiscal conseguiria respaldo da sociedade para furar o teto em caso
emergencial. Não é o caso de Bolsonaro, Guedes e o que sobrou de sua turma, que
estão mais perto de
cometer um crime de responsabilidade do que eventualmente
demonstrar alguma responsabilidade.
QUEM DIRIA
Depois de entregar todas as suas convicções
a Bolsonaro com o
único e mesquinho objetivo de manter-se no cargo, Paulo
Guedes quase foi demitido. E, se fosse, seria por esta mesma razão, por ter
abandonado os fundamentos que o fizeram ministro. Guedes, que já não tinha o
apreço da ala política do governo, sobretudo do guloso Centrão, perdeu a
credibilidade junto ao mercado quando subscreveu a ideia de furar o teto em
favor do auxílio emergencial. Todo mundo sabia que havia outros roteiros
possíveis para se atender à emergência, mas Paulo Guedes ignorou as
alternativas, assumiu a função de tesoureiro da campanha de Bolsonaro e
continuou feito ostra agarrado na cadeira achando que manteve sua
credibilidade.
O DONO DO BRASIL
O ex-presidente da Petrobras disse que
deixou a empresa por não suportar as pressões de Bolsonaro. Nas palavras de
Roberto Castello Branco, “Bolsonaro acha que é dono da Petrobras”. Na verdade,
o capitão se considera dono do Exército, que já chamou de “meu”, da Saúde, onde manda quem pode, do
Meio Ambiente, em que autorizou o estouro da boiada. E do orçamento, que fura
desavergonhadamente. O homem acha que é o dono do Brasil.
A COLÔMBIA PODE ESPERAR
A comitiva já estava embarcada nos carros
que a conduziria ao aeroporto quando chegou o último passageiro, o presidente
da Colômbia, Iván Duque. Ele acenou aos porteiros do hotel em Brasília, como se
estivesse cumprimentando
eleitores colombianos, e entrou no seu carro. A comitiva
percorreu menos de um quilômetro e Duque mandou parar o motorcade. Viu uma churrascaria no
caminho e mandou o motorista encostar. Com ele, estacionaram todos os demais.
Duque sentenciou: “Vamos comer um churrasco brasileiro”. Todo mundo estranhou o
gesto inesperado, mas ninguém reclamou. Melhor um rodízio do que aquele
lanchinho de avião. A Colômbia podia esperar.
PLANO B
Bolsonaro não desistiu da reeleição. Com o
auxílio emergencial acha que consegue sobreviver e crescer ao longo dos
primeiros meses do ano que vem. Mas o plano B está mantido. Se mais adiante as
pesquisas apontarem um inevitável fracasso eleitoral, ele retira sua
candidatura como forma de
inviabilizar Lula. E dirá alto e claramente que deixa a
disputa para impedir que o PT ganhe a eleição. A saída de Bolsonaro não derrota
automaticamente Lula, mas sua candidatura se enfraquece diante de um candidato
de centro que atraia os eleitores da direita bolsonarista. Claro que antes de
sair, Bolsonaro tentará um acordo de blindagem para si e seus filhos.
MORO AINDA
Para se viabilizar como candidato a
presidente com chances de brigar por uma vaga no segundo turno, Sergio Moro
deverá explicar ao Brasil seus métodos na condução da Lava-Jato e o fato de ter
aceitado o Ministério da Justiça de Bolsonaro. O ex-juiz diz que os resultados da força-tarefa serão
seus argumentos. Segundo ele, nunca se atingiu de maneira tão sólida e consistente
a corrupção no Brasil. Foram 179 ações penais, 209 acordos de colaboração e 17
de leniência, 295 prisões preventivas ou temporárias, 174 condenações, com a
recuperação de R$ 4,3 bilhões, em valores devolvidos aos cofres públicos, e R$
14,8 bilhões, em multas. Não é pouca coisa. Sobre sua participação no governo
Bolsonaro, Moro prefere falar sobre sua saída e não sua entrada. Acha que rende
votos ter denunciado o presidente por querer interferir na Polícia Federal. O
tempo dirá se ele tem razão.
PALAVRAS E EXPRESSÕES
Depois da confusão que se criou na CPI da Pandemia em razão do vazamento do relatório inicial, onde se classificava como genocídio os crimes cometidos pelo governo Bolsonaro contra os índios brasileiros, chegou-se a um entendimento. Saiu a palavra genocídio e entrou o termo “crimes contra a humanidade”. Eles significam mais ou menos a mesma coisa: o ataque sistemático a grupos ou coletividades que sejam identificados por sua etnia ou aspirações políticas, culturais, religiosas ou de gênero. Nas duas hipóteses, e ambas cabem ao governo, o que se almeja é o extermínio de um grupo.
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