Folha de S. Paulo
Não se protege a democracia replicando a
estratégia retórica dos extremistas
Nossos
indígenas foram vacinados em ritmo mais rápido que a média da população; na
Austrália, a imunização dos aborígenes andou sempre atrasada. A priorização dos
indígenas decorreu de decisões judiciais que contrariaram a política do governo
Bolsonaro. Democracias não produzem genocídios.
Os quatro grandes genocídios do século 20
–o armênio (1915-17), a Shoah (1941-45), o do Camboja (1975-79) e o de Ruanda
(1994)– foram provocados por Estados autoritários ou totalitários.
Discute-se a pertinência da aplicação do
conceito para outras catástrofes humanas, como o Holodomor, na Ucrânia
soviética, em 1932-33, a limpeza étnica na Bósnia, em 1995, os massacres de
Darfur, desde 2003, e a atual perseguição
contra os rohingya, em Mianmar. Todas são frutos sangrentos de regimes de
força.
Nos sistemas democráticos, governos são capazes de cometer crimes hediondos, mas nada que se aproxime de genocídio.
Os juízes, os parlamentares, a imprensa, as
organizações da sociedade civil interditam a estrada que conduz ao crime dos
crimes. Na outra ponta, nenhum regime genocida jamais experimentou o dissabor
de ser classificado como tal nos tribunais, parlamentos ou jornais de seu
próprio país. É que, neles, os dissidentes ocupam os cárceres ou as covas dos
cemitérios.
A CPI
da Covid desviou-se, na última hora, do descrédito internacional, cortando
as asas demagógicas de Renan Calheiros.
O conceito de genocídio envolve o
planejamento deliberado de extermínio completo de um grupo humano. As
negligências e omissões do governo federal na proteção de comunidades indígenas
diante da pandemia configuram crimes graves, que se juntam à coleção de ataques
à saúde pública cometidos ao longo da emergência sanitária. Nomeá-las como
genocídio seria banalizar o horror absoluto e, ainda, impedir que venham a ser
punidas.
Nesse caso, o radicalismo
retórico tem custos elevados. O TPI (Tribunal Penal Internacional) é uma
instituição multilateral frágil, pois quatro grandes potências –EUA, China,
Rússia e Índia– não reconhecem sua jurisdição.
Convertê-lo em palco de acusações absurdas significa
prestar um serviço aos Estados que contestam sua legitimidade. Além disso, no
plano nacional, implica oferecer absolvições gratuitas ao governo Bolsonaro,
contribuindo para a campanha de descrédito dirigida por sua máquina de
marketing contra o relatório da CPI.
A polarização política gera bolhas de
linguagem, que tendem a se cristalizar no ambiente tóxico das redes
sociais. Classificar
Bolsonaro como genocida tornou-se uma espécie de esporte, uma competição
acirrada que premia os campeões com medalhas de honra ideológica. O jogo da
hipérbole desenrola-se em salões climatizados –e parece quase inofensivo. Tem,
porém, consequências.
O presidente mobilizou várias vezes seu
então ministro do Arbítrio, André
Mendonça, para mover ações amparadas na Lei de Segurança Nacional e,
assim, revitalizar um código legal moribundo fabricado pela ditadura militar.
Contudo, não cultiva o hábito de processar
por calúnia os incontáveis arautos da acusação de genocídio. Há uma razão
estratégica para a contenção: se "eles" falam como "nós",
nossa linguagem fica normalizada.
"Pedófilo",
"traficante", "corrupto". A "liberdade de
expressão" nas redes sociais –isto é, o suposto direito de insultar–
constitui uma das mais sagradas bandeiras da extrema direita, e não só no
Brasil.
A finalidade é massacrar o diálogo
racional, transformando o debate público num enfrentamento entre gangues de
rua. Ela realiza-se plenamente quando o insulto se generaliza, degradando a vida
política numa infindável caçada de "inimigos do povo".
Bolsonaro não cometeu genocídio. Mas o
bolsonarismo promove, permanentemente, um genocídio da linguagem civilizada.
Não se protege a democracia replicando a estratégia retórica dos extremistas.
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