O Estado de S. Paulo
Nos momentos mais agudos de crise e
confusão institucional, muitos o procuravam, em busca de uma opinião
diferenciada, fora do mainstream, uma compreensão mais abrangente da vida.
Oliveiros S. Ferreira (19292017), que
faleceu há exatos quatro anos, é uma voz cuja ausência nos faz falta.
Heterodoxo, provocador, observador atento dos processos políticos e de seus
bastidores, era um intelectual completo, que não fugia da responsabilidade de
trabalhar com ideias. Não evitava as críticas, gostava de atrai-las,
transformando-as em alimento para as próprias elucubrações.
Oliveiros ficou quase meio século vinculado
ao Estadão, como editorialista, redator chefe e diretor. Trabalhou também como
professor na USP (desde 1953), na PUC, na Unesp. Notabilizou-se como um dos
pioneiros no estudo das relações internacionais. Foi meu orientador no
doutoramento, período em que descobri quanto ele era um intelectual
diferenciado, que reunia o erudito ao analista político minucioso, os grandes
quadros interpretativos aos fatos cotidianos muitas vezes apagados pela
valorização unilateral das estruturas. Era um professor cativante, sabia
ensinar e instigar, atiçava os estudantes com suas elipses e metáforas.
Ainda hoje me valho da “teoria das posses essenciais” (das almas, dos corpos, do poder, do excedente), que fundamentava a ciência política de Oliveiros. Nela havia influências múltiplas: Durkheim, Weber, Marx, Ortega y Gasset, Rosa Luxemburgo, Oliveira Viana, Hobbes, Maquiavel, Clausewitz, Rousseau, Trotsky, Gramsci. Ao marxista italiano, Oliveiros dedicou estudo sistemático, convencido de que Gramsci era um vigoroso pensador do Estado. Sua tese de livre-docência, defendida na USP, foi uma leitura dos Cadernos do Cárcere de Gramsci. Oliveiros deu-lhe o título de Os 45 Cavaleiros Húngaros, numa remissão à história dos soldados húngaros que, em reduzido número, submeteram a população inteira de uma cidade.
Em seu pensamento, a teoria social, as
relações internacionais, a História e a política mantinham-se sempre
articuladas. Estava convencido de que não pode haver teoria política sem
Sociologia, o “nacional” é sempre parte do “global” e os fatos políticos devem
ser compreendidos “à luz do Espaço e do Tempo em que se
Hoje, o intelectual poderia dizer que a
ascensão da extrema-direita populista ‘prostituiu’ o Estado e suas instituições
dão”, da “densidade e do volume dos grupos
sociais” que se relacionam e lutam entre si.
Em momentos de crise como o que enfrentamos
hoje, a teorização de Oliveiros é esclarecedora. A dominação política não se
reduz a posses materiais e uso da força. Domina quem exerce uma “direção
intelectual e moral” (Gramsci), ou seja, unifica pensamento e vida prática,
emoções, valores e interesses, de modo a soldar “as experiências de vida num
projeto votado a transformar o mundo, ou a conservá-lo aparentemente como tal”,
escreveu Oliveiros.
Assim ele chegava ao Estado, o ente que
organiza, define uma ordem normativa, garante a soberania. O Estado, para ele,
era unidade de decisão e ação, mas também um “espaço” onde as classes sociais
lutavam para se tornar dirigentes, ou seja, um lócus de disputa hegemônica, no
qual venciam os que conseguissem elaborar uma concepção do mundo que alcançasse
o “grande número” e neutralizasse os adversários.
Oliveiros foi um unitarista preocupado em
ver o Estado como articulador da sociedade, defensor de seu território e de seu
patrimônio. Pensou a política a partir desse registro, sem nunca aceitar que em
nome da unidade estatal (ou do “amor pela Pátria”) se aniquilassem as
diversidades regionais, a cultura e a democracia.
Para ele, no Brasil, as classes sociais não
souberam unir politicamente o País e sobrecarregaram o Estado. Passamos a viver
sob a sombra ameaçadora de ditaduras e guinadas autoritárias. Com isso, um
pedaço da estrutura estatal – os “militares” – terminou por agir com maior
desenvoltura política, como Oliveiros salientou no livro Os elos partidos
(2007).
Após a democratização dos anos 1980, o
capitalismo se reorganizou, a sociedade se diferenciou e o País enveredou por
trilhas inquietantes. Piorou com a eleição, em 2018, de um governo que age sem
responsabilidade, limites e escrúpulos. Oliveiros poderia dizer que a ascensão
da extrema-direita populista “prostituiu” o Estado e suas instituições. A
política deixou de fixar grandes objetivos nacionais com que alimentar os
órgãos do Estado e, por meio deles, chegar à população. Oliveiros estaria
atento aos fatos, mobilizando sua “dialética da Ordem” para analisar o que muda
e como pode mudar a realidade.
Hoje, ainda falta ao Brasil a solução de
seu enigma fundacional: a organização autônoma da sociedade e a articulação
entre Estado e vida social. Continuamos sem sujeitos capazes de promover
“políticas dirigidas para o futuro”.
Oliveiros ajudou-nos a compreender melhor o mundo em que vivemos. Foi uma referência para jornalistas e cientistas sociais, para os que se dedicam à ciência política e às relações internacionais sem esquemas atrofiadores. Sua ausência faz uma falta danada.
*Professor titular de teoria política da Unesp
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