Valor Econômico
Novas tecnologias favorecem disrupção nas
democracias
O mundo ocidental assistiu com perplexidade
à ascensão ao poder de líderes populistas de extrema direita, como Donald Trump
nos Estados Unidos e Jair Bolsonaro no Brasil. Tanto o americano quanto o
brasileiro, guardadas as devidas proporções considerando as diferenças
culturais entre os dois países, eram vistos como aventureiros, personagens
folclóricos, que jamais alcançariam a Presidência da República. Hoje, três anos
após a inesperada vitória de Bolsonaro - equivocadamente ainda atribuída por
muitos analistas à facada que ele sofreu a menos de um mês do pleito de 2018 -
e cinco do triunfo de Trump, têm-se pistas, mas não certeza absoluta, do que,
afinal, sucedeu para que líderes improváveis chegassem ao posto máximo de duas
das cinco mais populosas democracias do planeta.
É imperioso logo mencionar que o populismo radical de direita - caracterizado em todos os cantos por forte viés antidemocrático - não deu as caras apenas no Novo Mundo. Na França, solo secular das liberdades democráticas, o político centrista Emmanuel Macron teve que fundar, a apenas um ano da eleição, um novo partido - o “Em Marcha” -, para disputar a Presidência da República e evitar a eleição de Marine Le Pen, candidata de extrema-direita da Frente Nacional.
Na Alemanha, dona da maior economia da
União Europeia, políticos também de extrema-direita conseguiram assentos no
parlamento pela primeira vez em décadas. Na Inglaterra, Boris Johnson, do
partido Conservador, tornou-se primeiro-ministro em 2019. A diferença é que no
caso inglês, sendo o Reino Unido a mais antiga e estável das democracias, pesos
e contrapesos de seu regime parlamentarista jamais deram a nenhum líder, por
mais popular e carismático (e, portanto, forte) que fosse, poderes para
subjugar, tiranizar, o voto popular que os levou ao poder.
Instalados respectivamente na Casa Branca e
no Palácio do Planalto e chefes do Poder Executivo em repúblicas onde o poder
do Presidente é enorme - ainda maior, no caso brasileiro -, Trump e Bolsonaro
mostraram com o tempo por que decidiram sair do “anonimato” da política
tradicional e almejar o protagonismo da “nova” política. Foi inteligente de
ambos - e de quem os apoia em sociedades onde o espectro político é amplo -
perceber que havia oportunidade excepcional para chegarem ao poder.
No início de seus mandatos, Trump e
Bolsonaro até moderaram parte de seus discursos raivosos e antidemocráticos.
Mas, como na fábula do escorpião, logo se mostraram o que realmente são no
exercício do mandato popular. Depois de saborear inédita popularidade graças ao
pagamento do auxílio emergencial nesta pandemia, Bolsonaro começou a decair de
forma consistente nas pesquisas de opinião. Hoje, mais da metade dos
brasileiros o rejeita. Trump perdeu a reeleição para Joe Biden. É o caso de se
concluir que o pêndulo da história desfavorece a ascensão da extrema-direita?
Bem, Trump, mesmo considerando os atos
finais e infelizes de seu mandato presidencial - a invasão do Capitólio, sede
do Congresso americano, por trumpistas fanáticos, revoltados com a derrota do
então presidente, foi o episódio mais inesperado, vexaminoso e lamentável que a
sólida democracia americana viveu em mais de 200 anos -, é pré-candidato à eleição
de 2024, está à espreita, trabalhando arduamente para desafiar Biden.
É bom lembrar que, nos EUA, mesmo
presidentes bem-sucedidos perdem eleição ou não conseguem eleger o sucessor -
George H. Bush foi derrotado por um democrata então desconhecido, Bill Clinton;
este, popularíssimo, não transferiu os votos necessários para eleger Al Gore,
seu vice durante oito anos; e Barack Obama, igualmente popular e bem-sucedido
em seus dois termos, fracassou em manter a Presidência nas mãos de seu partido.
A situação de Bolsonaro, com vistas à
eleição do próximo ano, é bem ruim neste momento. Mas, considerando que ele tem
o poder da caneta e já pagou o preço da deterioração das condições financeiras
do país ao escancarar desde agosto seu plano fiscal populista-eleitoral, cantar
sua derrota agora seria temerário. Ademais, sejamos frios: a extrema-direita
não é propriedade exclusiva de personagens como Trump, Bolsonaro e Le Pen.
Trata-se de um fenômeno dos novos tempos.
Amaldiçoar novas tecnologias, especialmente
as que tornam melhor ou mais produtivas a vida de muitos - jamais de todos -,
parece ser uma postura apenas anacrônica. Mas, é bom pensarmos duas vezes. Ou
três ou muitas outras vezes sobre esse axioma.
A internet e a era digital provocam
disrupções de tal ordem no nosso modo de viver que não sobra tempo para
entendermos exatamente o que está acontecendo. Um efeito colateral, negativo,
das novas tecnologias nas democracias das sociedades ocidentais, provocado pelo
avanço desordenado e sem nenhuma regulação dos Estados nacionais, é visível: no
mundo de audiência crescente das redes sociais, as referências se perderam,
pavimentando o caminho para a desinformação, a desconstrução da história, a
subversão de valores humanistas lançados pela Revolução Francesa (1789) e
consagrados pela Declaração Universal dos Direitos Humanos (1946), a pregação
institucionalizada do terrorismo de opinião, a destruição de reputações.
Em artigo recente, Dani Rodrik, estrela
cadente do pensamento econômico mundial, revelou que o presidente Macron
encomendou a ele e à sua colega Stefanie Stantcheva, ambos professores da
Universidade de Harvard, estudo sobre como “aumentar os ganhos e a dignidade do
trabalho” num mundo dominado por inovações disruptivas para o mercado de
trabalho. Paul Krugman também vem tratando do assunto, sem medo de ser taxado
de anacrônico.
“A atual narrativa se concentra muito pouco
em como a inovação deveria se adaptar às qualificações da força de trabalho”,
disse Rodrik. “Em seu livro seminal ‘When Work Disappears’, de 1996, o
sociólogo William Julius Wilson descreveu a maneira pela qual a queda dos
empregos dos operários industriais alimentou o aumento da desagregação
familiar, o abuso de drogas e a criminalidade. (...) Uma crescente literatura
empírica interligou a ascensão do populismo autoritário, de direita, nas
economias avançadas à extinção de bons empregos para trabalhadores comuns.”
Vamos conversar sobre tecnologia?
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