quinta-feira, 16 de dezembro de 2021

Pedro Cavalcanti Ferreira, Renato Fragelli Cardoso*: Liberalismo de discurso, populismo de fato

Valor Econômico

O país caminha a passos largos para (mais) estagnação e um ambiente de regras e práticas muito ruins

Neste penúltimo ano de (des)governo, o país assiste a um retrocesso em várias áreas. Em curto espaço de tempo, observou-se uma mudança oportunista da regra do Teto dos Gastos, a deterioração do processo orçamentário, com gastos secretos e discricionários, e a aprovação de uma PEC que institucionalizou o calote de dívidas públicas. Isto tudo em um governo que se vendeu inicialmente como liberal, como aquele que faria uma revolução no sistema político e econômico.

O ímpeto liberal se limitou a temas técnicos que não mobilizam a opinião pública nem requerem complexas negociações políticas, como por exemplo algumas (boas) reformas setoriais - Lei do Saneamento, Lei do Gás, Lei dos Portos -, bem como algumas com impacto sobre toda a economia - nova Lei de Falências, Lei da Liberdade Econômica, e a independência do Banco Central. A reforma de mais impacto no longo prazo, a da Previdência, que já vinha sendo encaminhada pelo governo Temer, foi aprovada pelo Congresso sem o empenho de Bolsonaro. Entretanto, a revolução liberal anunciada não ocorreu, e nas dimensões que realmente importam - redução do tamanho do Estado, livre fluxo de mercadorias e serviços, reforma tributária e administrativa - muito pouco foi feito.

O governo que se elegeu prometendo privatizar várias estatais - com exceção da Petrobras, Banco do Brasil e Caixa - assistiu seu secretário especial de privatização pedir demissão após apenas um ano e meio no cargo por falta de apoio político para levar a cabo a empreitada. Desde o início do governo nada foi vendido. Pior, houve tentativa de interferência na Petrobras e sua política de preços. O uso político de empresas estatais manteve-se, como atesta a simbólica TV Brasil, antes condenada como cabide de empregos de sindicalistas, depois transformada em cabide de empregos de militares reformados amigos e ideólogos negacionistas.

Outra dimensão liberal clássica seria a abertura do comércio internacional. O livre fluxo de mercadorias e serviços permitiria a especialização em áreas onde há vantagem comparativa, maior inserção em cadeias produtivas globais, compra de tecnologia e insumos de ponta a preços competitivos. Entretanto, quase nada foi feito. O acordo de comércio internacional com a União Europeia, por exemplo, não progrediu pois esbarrou na (anti)política ambiental. Um liberal “raiz” estaria propondo uma redução unilateral de tarifas e barreiras não tarifárias, estaria agressivamente abrindo a economia, mas nada disso ocorreu, apesar do discurso.

A reforma tributária não avançou. A atual estrutura é excessivamente distorciva e burocrática, com vários impostos de incidência semelhante se somando, uma infinidade de regimes especiais, impostos em cascata, etc. Um caos. O governo não foi capaz de articular uma proposta ampla que atacasse consistentemente esses problemas, tendo se perdido em tolices como a volta da CPMF.

Um princípio liberal é a igualdade de oportunidades para todos. O Estado deveria agir para diminuir os privilégios dos mais favorecidos e ajudar os menos favorecidos a suplantar as barreiras e dificuldades que enfrentam. Uma educação pública de qualidade seria fundamental para aumentar as chances dos mais pobres, mas nessa área o governo vem falhando miseravelmente.

Durante a pandemia, em vez de coordenar esforços para que as escolas funcionassem adequadamente, o governo não fez absolutamente nada de relevante, de modo que uma parcela enorme dos alunos ficou mais de um ano sem aulas. Pior, vetou gastos que permitiriam levar internet adequada e educação à distância para os alunos da rede pública. Ao lavar as mãos, o governo escolheu os alunos ricos, que podem pagar escolas privadas, em detrimento dos mais pobres, uma opção pelos privilegiados.

O abandono da agenda liberal terá impactos permanentes. A adoção em seu lugar de uma agenda populista está provocando uma deterioração institucional rápida. Tudo somado o país caminha a passos largos para (mais) estagnação econômica e um ambiente de regras e práticas muito ruins, que privilegiam poucos.

Onde estão os efeitos permanentes mais nocivos? Primeiramente na educação, pois abandonou-se uma geração de estudantes que terá enorme dificuldade em recuperar o atraso, com impacto de longo prazo sobre pobreza, desigualdade e perspectiva de emprego dos jovens. Em segundo lugar, ao manter um Estado inchado - sem privatizações ou reforma administrativa - favorece-se a ineficiência e facilita-se a corrupção. Em terceiro, a paralisia na agenda tributária preserva a má alocação de recursos, bem como cria barreiras a investimentos e inovações. Finalmente, ao não avançar na abertura ao comércio exterior, mantém-se a baixa produtividade, inibindo-se o crescimento e perdendo-se oportunidades.

E a deterioração institucional do país está, como dito acima, em um processo orçamentário viciado; em uma expansão de gastos que não respeita regras fiscais; no calote dos precatórios; no aparelhamento de órgãos de Estado - Polícia Federal, Ibama, Inpe, etc - para proteger interesses particulares; no desrespeito à legislação ambiental a fim de favorecer apoiadores; na intervenção na saúde para defender agendas anti-científicas, entre várias tendências preocupantes.

Não há esperanças que reformas importantes sejam aprovadas no último ano do mandato. Também não se vê reversão significativa na dimensão institucional, ao contrário, a tendência parece ser de agravamento. A distância entre o prometido e a realidade é enorme. A oportunidade de corrigir o rumo se oferece ao eleitorado em outubro de 2022.

*Pedro Cavalcanti Ferreira é professor da EPGE-FGV e diretor da FGV Crescimento e Desenvolvimento
Renato Fragelli Cardoso é professor da Escola Brasileira de Economia e Finanças (EPGE-FGV).


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