O Globo
Emoldurado por um teatro desoladoramente
vazio e sob as palmas apenas da orquestra, um homem caminha, amparado, até sua
cadeira, na boca de cena. Ali, ouve em silêncio os primeiros acordes de canções
compostas há meio século — ou teria sido há meia hora? E então solta a voz —
aquela que Elis Regina disse ser a de Deus, se Deus tivesse uma voz.
A voz de Deus não tem mais o timbre, a
potência, a extensão de outros tempos. Mas é, ainda, solene, terna, envolvente.
Divina.
Quem está ali é Milton Nascimento, cercado
de novos arranjos, jovens artistas e músicos embevecidos com o compositor que
não precisou escolher entre ser moderno ou eterno. Sua arte esteve sempre
impregnada de uma ancestralidade e uma modernidade atemporais. Milton é aquela
esquina onde se cruzaram os Beatles e a música sacra, San Vicente e o Beco do
Mota, o jazz e o que se dançava nos bailes da vida. Ao cantar Três Pontas,
cantou o mundo.
Diferentemente dos outros grandes da sua geração, não foi preso, não teve de se exilar. Sua prisão foi a censura; seu exílio, o das palavras. Do encontro com Clementina de Jesus, salvou-se um refrão; restou uma invocação do que seria um dueto com Dorival Caymmi. Nem por isso Milton deixou de fazer do “Milagre dos peixes” um dos seus discos mais eloquentes: a voz era um instrumento que não se podia censurar.
Milton sempre foi de falar pouco e, com sua
música, dizer o indizível. Sem alarde, compôs uma poderosa trilha sonora para
nossa época. Vestiu os versos viscerais de Ruy Guerra (Meus gritos, afro-latidos / Implodem, rasgam, esganam, E
tudo aquilo de que fujo / Tirou prêmio, aval e posto) em “E daí?”. A
utopia de “Primeiro de maio”, a metáfora do “Cio da terra”, parcerias com Chico
Buarque. É seu, com Wagner Tiso, o hino das Diretas Já e da redemocratização (E há que se cuidar do broto / Pra que a vida nos dê flor /
E fruto). Com Caetano Veloso, a celebração de que Qualquer maneira de amor vale a pena.
Sua militância, com Fernando Brant, foi a
da amizade. É solidariedade a ideologia que perpassa a canção do sal, a missa
dos quilombos, o afeto por uma gente que ri /
quando deve chorar / e não vive / apenas aguenta.
Milton tornou mais belas as palavras de
Carlos Drummond, Fernando Pessoa, Manuel Bandeira, Ferreira Gullar,
desentranhando melodias tão inspiradas quanto os versos — sem jamais
ofuscá-los. Soube ser reverente e à altura dos mestres que musicou.
Quando tenho saudades de mim — do menino,
do moleque, do homem que eu era, de tudo que eu podia ser —, ouço Milton, e ele
me reconcilia comigo. No Cine-Theatro Central de Juiz de Fora — onde se
apresentou na noite de 29 de dezembro, com a Orquestra Ouro Preto —, cada
cadeira vazia evocava um dos milhões que o guardam do lado esquerdo do peito,
que fizeram ao som da sua voz a travessia das últimas cinco, seis décadas.
Em 2022, chegando aos 80 anos, Milton vai mais uma vez aonde o povo está, na turnê “A última sessão de música”. Uma série de encontros e despedidas, em que Bituca, velho maquinista com seu boné, de sorriso aberto e roupa nova, vem renovar a nossa fé.
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