Valor Econômico
A polêmica envolvendo o tenista Novak
Djokovic expôs a hostilidade crescente entre vacinados e não vacinados
A polêmica atual envolvendo o tenista Novak
Djokovic expôs a tensão existente em muitos países entre a maioria de pessoas
vacinadas e a minoria de não vacinados. A hostilidade mútua gerou uma torcida
pró e contra o sérvio. Afinal, como deve ser a política para os não vacinados?
Essa questão ameaça criar mais um cisma social numa época já de fortes
polarizações.
Movimentos antivacinas existem há décadas,
assim como os que rejeitam os medicamentos tradicionais. Por trás disso há
posições filosóficas, religiosas e desconfiança em relação aos grandes grupos
farmacêuticos ou ao capitalismo em geral. Porém, a rejeição à vacina contra a
covid-19 ganhou outros dois argumentos.
O primeiro é quanto à segurança, devido ao
tempo recorde em que as vacinas foram desenvolvidas, o que poderia gerar falhas
e reações adversas perigosas. Cidadãos de países com regimes autoritários, como
a Rússia, também desconfiam da qualidade das vacinas locais.
Conheço o caso de um jovem saudável que teve uma reação muito grave, que médicos de um dos melhores hospitais de São Paulo atribuíram com grande probabilidade a uma vacina específica. Ele felizmente se recuperou e tomou a segunda dose, de um outro fabricante.
Essa é uma preocupação legítima, mas
superestimada. O risco de morte por reação à vacina é muito menor do que o
risco de morrer de covid-19. Mas, claro, jovens saudáveis, com bem menos
chances de terem complicações da covid-19, podem achar esse risco desnecessário.
O outro argumento é político. Desde o
início da pandemia, grupos de direita negaram ou minimizaram a gravidade da
doença. Por consequência, rejeitaram medidas de combate. Alguns, como o premiê
britânico Boris Johnson, recuaram dessa posição inicial e apoiaram tanto
‘lockdowns’ (quando foi preciso) como a vacinação. Outros, não.
Há ainda aqueles não se opõem à vacina, mas
à obrigatoriedade de vacinação. Querem liberdade de escolha. A liberdade
individual é um princípio existencial no Ocidente, ao contrário da China, por
exemplo, onde o interesse individual está submetida ao interesse coletivo (que
é sempre definido pelo regime, claro).
Mas mesmo no Ocidente existe um antigo e
amplo debate sobre os limites da liberdade individual. Não temos a liberdade de
não pagar impostos. Do mesmo modo, somos obrigados a vacinar nossos filhos
contra uma série de doenças para poder matriculá-los nas escolas públicas.
Esses argumentos por vezes se confundem.
Djokovic sempre foi um negacionista, mas hoje alega defender a liberdade
individual (chegou a promover, durante um período de ‘lockdown’ na Europa, um
torneio de tênis na Sérvia, que acabou virando foco de infecção). Já o
ex-presidente Donald Trump, que se opõe à obrigatoriedade, disse ter tomado as
três doses e defendeu a vacina em comício em dezembro, sendo por isso vaiado
por parte de seus apoiadores.
Do outro lado, há múltiplos argumentos em
favor das vacinas. Elas comprovadamente protegem contra formas graves da
covid-19. Um estudo publicado nesta semana pela “New England Journal of
Medicine” diz que quase 100% dos adolescentes que necessitaram de UTI por
covid, em 23 Estados dos EUA pesquisados (entre 1º de julho e 25 de outubro de
2021), não eram vacinados.
É legítima também a preocupação dos
vacinados de estar num ambiente fechado junto com não vacinados.
Além disso, há um custo social da não
vacinação. Bolsões de não vacinados favorecem surtos da covid-19, que
prejudicam uma série de atividades, afetando os vacinados. Favorecem também o
surgimento de novas cepas.
Ao lotarem hospitais em surtos de covid, os
não vacinados põem em risco quem precisa de atendimento por outro motivo. Se
alguém tiver um AVC, pode se deparar com UTIs lotadas por pacientes de covid
não vacinados.
O tratamento de quem não se vacina é pago
pelos contribuintes, incluindo os que se vacinaram.
Além disso, a vacinação parece induzir a
uma confiança maior das pessoas em circularem, o que favorece a economia em
geral.
Por fim, há o argumento moral da carona
grátis. Não vacinados se beneficiam dos efeitos da vacinação, que ajuda a
controlar a doença, ao mesmo tempo em que colocam em risco aqueles que se
vacinaram. Se ninguém se vacinasse, haveria uma situação de restrições
prolongadas, com muitíssimos casos a mais, hospitais lotados, mais mortes, mais
desemprego e economia destruída. Ou seja, os não vacinados pegam uma carona sem
custo com os vacinados.
Como resolver isso? O tema é extremamente
complexo. A ex-premiê alemã Angela Merkel, democrata-cristã, opunha-se à
obrigatoriedade de vacinação, em favor de um processo de diálogo e persuasão
dos não vacinados. Já o premiê da Itália, o liberal Mario Draghi, foi o
primeiro líder na Europa a obrigar os trabalhadores a se vacinarem (e agora
qualquer cidadão acima de 50 anos), pois trata-se de uma emergência e não há
tempo a perder.
No lugar de obrigatoriedade, alguns
defendem soluções de mercado. Cingapura desde o ano passado exige que não
vacinados paguem pelo seu tratamento de covid-19. De forma similar, a província
de Quebec, no Canadá, cogita criar um imposto de saúde a ser cobrado dos não
vacinados. Isso daria um estímulo para as pessoas se vacinarem: escapar de uma
eventual punição.
Ainda que pareça justo, isso é
discriminatório e possivelmente ilegal na maioria dos países. Em geral, é
proibido negar assistência médica pública a um cidadão. Por analogia, isso
levaria a cobrar pelo tratamentos de fumantes e pessoas obesas, que também
geram custos adicionais à saúde.
É possível que, sendo a covid uma situação
emergencial, com impacto social, econômico e na saúde muito mais grave do que o
tabagismo, esse debate avance. Mas é politicamente difícil.
O que fazer então? A Europa parece rumar
para a vacinação obrigatória, inicialmente dos adultos, com risco de protestos
violentos - manifestantes contra a vacina quase invadiram o prédio do
Parlamento da Bulgária na quarta-feira. Nos EUA, a Suprema Corte barrou ontem a
principal iniciativa do governo de Joe Biden de vacinação obrigatória, que
previa que todos os trabalhadores de empresas com mais de cem funcionários
teriam de se vacinar.
O impasse expõe a enorme crise de confiança
que se instalou em quase todo o mundo. O discurso racional cedeu lugar ao
discurso emocional, com as pessoas entrincheiradas nas suas posições e hostis
aos argumentos alheios. A liberdade individual parece ser apenas a liberdade de
dizer não, e nunca a de dialogar, negociar e, eventualmente, ceder. Isso é um
mau presságio para tudo.
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