Não
se sairá da enorme crise atual, a maior desde o final do regime militar, sem um
pacto de reconstrução nacional
Para
ganhar as eleições de 2022 e governar o país no dia seguinte, reconstruindo o
que foi destruído nos últimos três anos, será necessário montar uma coalizão
política e social bem maior do que a erigida pelo bolsonarismo. Essa
constatação deveria ser um mantra para os que desejam vencer o presidente
Bolsonaro. Por essa razão, é provável que o termo frente ampla apareça frequentemente
ao longo deste ano. Tal ideia vale tanto para alianças comandadas pela esquerda
em direção ao centro, quanto o agrupamento da centro-direita democrática com
forças diferentes dela. Em outras palavras, não se sairá da enorme crise atual,
a maior desde o final do regime militar, sem um pacto de reconstrução nacional.
Frente
ampla é apenas uma das denominações mais usuais para momentos políticos que
exigem grandes alianças entre grupos diferentes com o intuito não só de ganhar
eleições, mas de reconstruir a ordem política e social. Isso já aconteceu em
situações como o fim de uma guerra, de um regime autoritário ou quando se quer
enfrentar um sistema político tradicional muito duradouro e avesso a mudanças.
O caso brasileiro tem suas peculiaridades, sendo a principal a existência de um grupo que governa o país - a aliança entre o bolsonarismo autoritário e o Centrão patrimonialista - por meio de um projeto de destruição das principais instituições e valores criados a partir da redemocratização. O resultado da distopia bolsonarista é a ausência de qualquer perspectiva positiva de futuro, seja na economia, na política, nas questões sociais e na inserção do Brasil no mundo.
Para
quem discorda deste diagnóstico sombrio, coloque-se na posição de um jovem brasileiro
neste momento: se for pobre, temerá pela própria sobrevivência; se for de
classe média, acredita que terá uma vida pior do que a de seus pais; e se for
rico, já está programando sua vida no exterior. Na escala e intensidade atuais,
trata-se de um fenômeno novo e perverso para o sentido da nação.
Neste
quadro geral de destruição bolsonarista, o tema da frente ampla é fundamental
tanto no plano eleitoral como no governativo. Em relação às eleições de 2022,
será difícil ganhar de Bolsonaro sem uma aliança maior do que a usualmente
pensada pelas agremiações partidárias. Luiz Inácio Lula da Silva percebeu isso
e, mesmo liderando as pesquisas com ampla margem, sabe que a campanha será
muito difícil, de maneira que precisará acenar para o centro partidário e,
importante frisar, para grupos sociais que vão além do lulismo, como parcelas
do empresariado e setores da classe média que perderam status social, quando
não o próprio emprego. O desenho dessa coalizão não será simples de se montar,
mas ela é essencial seja no cenário de vitória no primeiro turno, seja num mais
provável (por ora) segundo turno. Os petistas que reclamam disso não entenderam
que o país está numa situação bem pior e mais complexa do que em 2002.
Raciocínio
similar deveria ser feito pelos demais candidatos que pretendem vencer o
bolsonarismo. Será preciso chegar às classes D e E, às parcelas mais jovens e a
eleitores nordestinos que tiveram ascensão social durante o lulismo. É uma
questão matemática: hoje, o eleitorado mais pobre está ou com Lula ou, em menor
medida, mas ainda de forma significativa, com Bolsonaro. Por enquanto, os
assuntos priorizados por João Doria e Sergio Moro, e da maneira como têm sido
tratados no plano do discurso, interessam a uma parcela de eleitores mais das
classes A e B, especialmente aos que vivem mais no Centro-Sul do país, tendo
pouco apelo à maioria da população, que mora nas áreas periféricas dos centros
urbanos.
Uma
coalizão do centro para a direita não tem um Plano Real para apresentar, que,
para além de ter sido uma reforma estrutural da economia, foi principalmente um
projeto com enorme apelo popular. Fiar-se apenas no discurso contra a corrupção
ou na ideia de que uma terceira via é melhor do que Lula e Bolsonaro não irá
convencer a maioria do eleitorado, que é mais pobre, negra e urbana. Para essa
parcela majoritária, o que importa hoje são as condições sociais e econômicas
que lhe afetam brutalmente, em termos de crise na saúde e na educação, perda de
emprego ou redução de renda, aumento vertiginoso do custo de vida, falta de
perspectiva para os mais jovens, maior vulnerabilidade em termos de moradia e
segurança.
A
cara do espectro atual que vai da direita democrática para o centro, excluindo
aí o bolsonarismo, é muito pouco popular em termos de linguagem, temáticas e
apoiadores. Se quiser ter chances eleitorais reais, precisa ampliar sua pauta
de propostas e os grupos inseridos neste projeto, para depois não reclamar das
decisões do povo e escolher a via fácil e covarde do absenteísmo no segundo
turno. Fizeram isso ou pior em 2018, e o país está pagando muito alto por isso,
sobretudo os mais pobres.
Já
o lulismo é bastante popular, mas necessita incorporar outros apoios
partidários e sociais se deseja vencer no primeiro turno ou ter uma vitória
mais tranquila no segundo turno - até porque, ao final, poderá enfrentar um
outro candidato que não Bolsonaro. Cabe recordar que o petismo nas duas últimas
eleições já tinha perdido grande parte do apoio da centro-esquerda e esquerda.
A vantagem nas pesquisas é boa, mas claramente insuficiente para adotar uma
visão soberba do “já ganhou”.
Para
finalizar a importância da ideia de frente ampla no plano eleitoral, deve-se
ressaltar que Bolsonaro, por enquanto, não é cachorro morto. Ele tem chances
reais de ficar entre 20% e 25% dos votos, o que pode lhe garantir a ida ao
segundo turno - Serra foi ao segundo turno em 2002 com 23% dos votos. E se
chegar à rodada final, mesmo com uma dianteira folgada de Lula, Bolsonaro
jogará pelo tudo ou nada. Se não houver alianças mais amplas entre os
democratas, o país poderá cair no caos - seja a desordem que produza o
Capitólio brasileiro, seja a vitória apertada de Bolsonaro por meio de métodos
escusos e autoritários de se fazer política.
Tão
ou mais importante do que uma perspectiva de frente ampla no momento eleitoral
é sua necessidade para se governar o Brasil em 2023. O tamanho da destruição
bolsonarista é muito grande e nenhuma força política relacionada a um espectro
ideológico será capaz sozinha de reconstruir o país. O governo Bolsonaro teve
um efeito danoso e disruptivo sobre cinco dimensões essenciais da nação. A
primeira diz respeito às instituições democráticas, com a anulação da
Procuradoria-Geral da República, a tentativa de aparelhar e deslegitimar o
Judiciário, a construção de maioria política por verbas secretas e o
enfraquecimento do federalismo cooperativo em prol de um centralismo
autocrático. É verdade que em parte a democracia reagiu ao bolsonarismo, mas
também é verdadeiro que ela se tornou bem mais frágil do que era antes.
Uma
segunda dimensão da destruição está na economia. Por mais que se louvassem ao
início do mandato os planos liberais de Paulo Guedes, o saldo final, visto de
forma empírica e não ideológica, é o baixo crescimento, o desemprego, a
inflação e, o mais importante, a ideia de que qualquer lógica econômica deve se
subordinar aos desígnios populistas do presidente. A PEC dos Precatórios é uma
quebra de contratos sociais e intergeracionais que não se fazia desde o governo
Collor. Voltamos várias casas na institucionalização da estabilidade econômica.
Outra
implosão institucional grave foi a da destruição da maioria das políticas
públicas do país. O debate brasileiro, infelizmente, é dominado pelo
economicismo, o que tem nos impedido de ver que o desmonte das políticas de
saúde, educação, assistência social, cultura e meio ambiente, para ficar nas
principais, tem efeitos tão nefastos quanto a crise econômica. O Brasil não vai
reduzir a desigualdade e pobreza, nem se desenvolverá plenamente, sem recuperar
suas principais políticas públicas, algo impossível de ser feito por um segundo
mandato de Bolsonaro.
A
perda de importância geopolítica é um dos piores legados do bolsonarismo. O
Brasil precisa dialogar com o mundo e produzir parcerias para ampliar seu
desenvolvimento. Viramos párias ambientais e no campo dos direitos humanos, e o
próximo passo frente a isso serão sanções econômicas e perda de oportunidades
de investimento. E para finalizar essa hecatombe, a lógica política
bolsonarista implodiu a convivência social entre os brasileiros. O sonho de
Bolsonaro é produzir algo similar ao que fez Trump nos EUA, dividindo de tal
maneira o país que não há hoje qualquer negociação e acordo entre os diversos
atores sociais. Só resta a guerra e a ameaça de um domínio autocrata por parte
dos autoritários.
Este
último legado é o mais preocupante, porque mesmo que perca a eleição, o
bolsonarismo fará de tudo para inviabilizar o próximo governo, seja de Lula ou
de uma força de centro-direita. Diante disso e da necessidade de reconstruir o
país, a lógica da frente ampla, adaptada às nossas circunstâncias, deveria
estar na cabeça de todos os presidenciáveis que são adversários de Bolsonaro.
Afinal, reformas como a tributária, a administrativa, a fiscal, a trabalhista e
das políticas sociais exigirão muita negociação entre diferentes. Do contrário,
fracassarão, como tem ocorrido em geral com o país desde 2013, quando se perdeu
a capacidade de se governar por coalizões políticas e sociais amplas.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas.
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