sábado, 12 de fevereiro de 2022

Dora Kramer: Mil centrões

Revista Veja

A ideia dos partidos é usar federações para criar bolsões de poder no Congresso

Se a chamada terceira via tiver de morrer antes mesmo de chegar à praia (das urnas), não será por vontade do eleitorado, que a ela ainda não foi devidamente apresentado. Caso as candidaturas alternativas ao embate Jair Bolsonaro/Luiz Inácio da Silva venham a falecer, será obra de morte matada. Encomendada pelos partidos que as lançaram e agora se ocupam em firmar alianças sob a nova regra das federações.

Sabem do que se trata? Pois então, devido à proibição de coligações nas eleições proporcionais (deputados e vereadores) em setembro do ano passado, o Congresso autorizou os partidos a se juntar sem a necessidade de fusão, mas os obrigou a fazê-lo de modo uniforme em todo o país e assim permanecer durante quatro anos. Ah, sim, obriga também a que tenham identidade programático-ideo­lógica, coisa um tanto fantasiosa em nosso cenário de doutrinas partidárias bastante gelatinosas.

A ideia em si não é má ou, por outra, é boa. Em tese poderia resultar na redução da quantidade de partidos, acabar com a extrema dispersão na representação popular e facilitar a interlocução entre os poderes Executivo e Legislativo.

A questão ainda não discutida é a viabilidade da aplicação da norma frente aos usos e costumes da política brasileira como ela é. Falaremos disso adiante. Primeiro falemos do uso da receita e de seus efeitos sobre as candidaturas que tendem a se esvair nas movimentações partidárias em torno das federações.

O tema não é de interesse apenas das legendas menores, cuja sobrevivência está ameaçada pela combinação do veto às coligações proporcionais com a exigência de votação mínima (cláusula de desempenho) para obtenção de representação na Câmara, acesso a dinheiro e espaço nas propagandas de televisão e rádio sustentados por recursos públicos.

Os partidos grandes e médios, que se garantem individualmente, estão preocupados principalmente com a correlação de forças, internas e externas, no Parlamento. Atentos, sobretudo, ao significativo peso do Centrão, diante do qual correm o risco de se tornar meros satélites em termos de decisões e na sempre tensionada relação com o Palácio do Planalto.

Quando PSDB, MDB, PDT, PSB e mesmo o novo União Brasil negociam a formação de federações, estão na verdade empenhados em criar bolsões de poder dentro do Congresso, a fim de fazer frente àqueles partidos que já atuam em conjunto e conseguiram fazer valer seus interesses junto ao governo Bolsonaro. Se Lula for eleito, conseguirão o mesmo, e é contra isso que os caciques das legendas citadas acima querem se prevenir. Como? Formando elas mesmas os próprios Centrões.

Para isso precisam eleger o maior número possível de deputados. E, em nome dessa causa, estão dispostas a sacrificar as candidaturas presidenciais. Aquelas que ainda não deram sinais de decolagem na preferência do eleitorado, por mais que seja cedo para aferir as reais predileções dos brasileiros.

Suas altezas têm pressa. Isso já se vê nas reclamações de candidatos a deputado e senador que reivindicam mais dinheiro para suas campanhas em detrimento do financiamento dos candidatos a presidente. Como se dissessem: não vamos gastar vela boa com defunto ruim. Assim, desde já, dão como perdidas as paradas e decretam a falência dos projetos presidenciais que nesse ritmo tendem a morrer por inanição.

A instituição do financiamento público total mudou a lógica do jogo. Antes os candidatos a presidente captavam recursos junto a empresas, mas agora o dinheiro vai para os partidos, cabendo às direções a divisão da partilha, que passa a obedecer à guerra de pressões internas. E nelas prevalece hoje o interesse de reforçar as tropas no Congresso.

Se o preço fosse a melhoria teórica embutida na intenção original das federações, tudo bem. O problema é que nada garante seu bom funcionamento nem permanência. Sempre pode, passadas estas eleições, haver adaptações na rigidez da norma aos interesses do próximo pleito. Além disso, se hoje a fidelidade partidária não vale na prática, quem assegura que valeria para as federações? A tendência será o vale-tudo de sempre, pois às legendas não apetece impor punições aos infiéis.

Uma coisa é a boa intenção em padrão suíço. Outra bem diferente é a execução no ambiente ainda retrógrado em que se faz política no Brasil.

Publicado em VEJA de 16 de fevereiro de 2022, edição nº 2776

 

Um comentário:

ADEMAR AMANCIO disse...

Parece que a ''predileção'' dos brasileiros já foi sedimentada.