Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
Os protagonistas de um possível desempenho
democratizante e libertador vão sendo constituídos, criados pela história
política do futuro próximo, já em curso
O Brasil entra agora no período que mais de
perto precede a fase dos embates propriamente eleitorais relativos à escolha do
presidente da República, dos governadores, de senadores e dos deputados
federais. Provavelmente, será o período mais tenso do jogo político. Nele atuam
diferentes agentes de definição de qual será o perfil do constituinte da
próxima composição do Estado brasileiro. O que será o conjunto dos eleitores
como um corpo coletivo, ainda que na diversidade de suas orientações e de seus
desencontros.
Momentos como esse, na história política, expressam a tendência mais geral de definição da configuração cambiante do Estado vivo, o Estado traduzido em modo de pensá-lo, de orientá-lo e dar-lhe rumo. São momentos da possibilidade de mudança política, de correção de curso, de correção de erros, de inovação.
A história política se dá a ver na pulsação
das conjunturas, na continuidade ou na descontinuidade das orientações de
governo. Aqui, essa pulsação tem se traduzido em estados de ânimo precursores do
que supostamente vai ocorrer. Estamos vivendo esse momento. Não está sendo este
um momento de confiança, nem de certeza nem de otimismo.
Nesse sentido, mais do que momento de
definição das orientações e escolhas partidárias - e alianças e contra-alianças
-, é o momento de formação e definição de qual será o sujeito da decisão
eleitoral, o eleitor que conta, aquele que aperta as teclas da urna eletrônica.
Ele se revela no resultado dos votos como o
sujeito abstrato e coletivo, a nação como vontade política, certa ou errada.
Esse sujeito coletivo revela sua cara não necessariamente na cara de quem elege
nem no final da votação, mas no final do governo eleito. A cara do eleitor
coletivo de 7 e de 28 de outubro de 2018 está se definindo no finalmente destes
três anos de incertezas e de equívocos. Nesse sentido, o sujeito da eleição de
2 de outubro de 2022 já será outro.
O eleitor brasileiro é equivocadamente
tratado pelos políticos como um sujeito temporário, de curta durabilidade, no
período eleitoral objeto do assédio de candidatos e partidos que se munem de
todos os recursos lícitos, mas também dos ilícitos, infelizmente, para usá-lo e
não para convencê-lo. Aqui, candidatos e partidos não estão interessados em
dialogar com a consciência política do eleitor, nem em reconhecer-lhe a
soberania, nem em alargar-lhe o discernimento crítico.
É claro que há muitas e honrosas exceções,
de políticos comprometidos com o caráter cidadão do voto e do serviço público
expressões legítimas do que é votar e ser votado numa democracia. Temos visto
edificantes manifestações de respeito ao mandato por aqueles que se desempenham
com exemplar dedicação ao dever de eleito.
A CPI da Covid deu a todos nós a
oportunidade de reconhecer, na maioria decisiva de seus membros, na diversidade
dos partidos que representavam, exemplar dedicação ao bem comum. O contraste
foi claro com a conduta daqueles que na comissão defenderam o indefensável do
oportunismo, do desapreço pela vida, do negacionismo antissocial.
É provável que o cenário possível da
eleição já esteja a se fechar e que a CPI tenha demarcado o campo de
referências do eleitor desta eleição. Foi, provavelmente, o mais decisivo
acontecimento político de todo o período do atual governo, sobretudo porque
ganhou sentido no involuntário contraponto com a desconstrutiva reunião
governamental de 20 de abril de 2020.
Nessa reunião todas as incongruências e
características negativas do governante aglutinaram-se e deram voz e imagem ao
que finalmente era o governo eleito em 2018.
No contraste, a CPI valorizou o
Legislativo, mostrou-nos que as instituições estão funcionando bem, imunes às
personificações do mal e aos ímpetos antidemocráticos e autoritários dos que
querem destruí-las para governar em nome próprio. A CPI foi uma lufada de brisa
a iniciar a dissipação dos miasmas que sufocam a política brasileira.
Quase imperceptivelmente, os protagonistas
de um possível desempenho democratizante e libertador vão sendo constituídos,
criados pela história política do futuro próximo, já em curso. Sinais de que a
insurreição dos desvalidos desta hora escura pode ter sido iniciada.
Uma insurreição de minúsculas rupturas
cotidianas, decorrentes do que se evidencia como potencial coalizão de
descontentamentos residuais das certezas prepotentes e autoritárias. Não só
contra os poderes visíveis e dominantes, como sugere Henri Lefebvre, mas também
contra os pequenos poderios decorrentes, disseminados nas brechas da sociedade.
Os do cotidiano de fome não saciada, de abandono, de luto. Os dos brasileiros
supostamente excluídos do destino da nação.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "Sociologia do desconhecimento ensaios sobre a incerteza do instante" (Editora Unesp).
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