Valor Econômico
Fardados terão muita dificuldade se
tentarem apagar os rastros de entusiasmo e participação no governo Bolsonaro
Abre aspas: “Meu voto é pro Bolsonaro. O
Bolsonaro representa a democracia, representa a liberdade. O Haddad representa
a ditadura, representa o fascismo, representa nazismo, representa racismo,
divisão do país em cores e regiões. Então é a hora da opção ‘o gigante
acordou’, o Brasil vai votar Bolsonaro. Que é para reverter essa situação e
tirar o atraso do tempo perdido com toda essa gente corrupta. Muito obrigado.”
A declaração de voto reproduzida acima,
gravada em vídeo em algum momento entre o primeiro e o segundo turno da eleição
de 2018 e colocada na internet, não é de um bolsonarista extremado de rede
social. É do general do Exército Brasileiro Carlos Alberto Santos Cruz.
Santos Cruz não teve a carreira militar
bloqueada sob as gestões do partido do personagem que ele reputava representar
a ditadura, o fascismo, o nazismo e o racismo. Também não consta que, mediante
algum exame de consciência, tenha oferecido qualquer tipo de resistência às
sucessivas promoções que, naquela época, lhe conduziram ao topo da carreira.
Entre o primeiro dia do governo Lula, em 2003, e a data do impeachment de Dilma Rousseff, em 2016, Santos Cruz foi comandante da 13ª Brigada de Infantaria Motorizada, depois subiu para comandante da 2ª Divisão do Exército e subcomandante de Operações Terrestres do Exército.
Hoje, Santos Cruz diz que Bolsonaro é dado
à ‘sem-vergonhice’
Sob os governos petistas, foi designado
para comandar duas missões internacionais, algumas das posições de maior
prestígio no meio militar. Chefiou milhares de homens de 19 países na Missão
das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti e depois comandou a Força de
Paz na Missão de Estabilização da República Democrática do Congo.
Concluída a eleição de 2018, o general
Santos Cruz foi nomeado ministro-chefe da Secretaria de Governo do vitorioso
Bolsonaro, aquele para quem ele pediu voto. Insultado no YouTube pelo escritor
Olavo de Carvalho e bombardeado nos bastidores pelo vereador Carlos Bolsonaro,
foi demitido antes que o novo governo completasse seis meses.
Na internet, tudo é eterno.
Outro vídeo gravado um pouco antes da
eleição de 2018 tem o também general Ajax Pinheiro como protagonista.
“Essa eleição do dia 28 não é uma eleição como
outra qualquer. Ela é diferenciada. O principal componente que nós vamos agora
nos confrontar é a ideologia”, explica. “Eles [os petistas] voltam com sede de
vingança. Se eleitos, nós do Exército seremos as principais vítimas”,
prossegue. “Não tenham dúvida. Se voltarem ao poder, eles farão, tentarão
fazer, o que a sua ideologia fez em países como a Venezuela.”
Logo após associar o PT ao comunismo,
general Ajax sustenta que os institutos de pesquisa estavam manipulando os
resultados para influenciar o eleitorado contra Bolsonaro.
Na parte final de sua pregação, sugere que
Haddad também seja esfaqueado por Adélio Bispo de Oliveira. “O candidato
fantoche, o boneco de ventríloquo, disse que gostaria de participar de um
debate com Bolsonaro na enfermaria. Porque os médicos vetaram a participação do
Bolsonaro em debates. Eu sugeriria ao fantoche Haddad que, antes de ir para a
enfermaria, passasse na cela do Adélio, o estripador esquerdista, e pedisse que
ele lhe desse o mesmo tratamento que deu ao Bolsonaro. E aí o Haddad, após
perder alguns litros de sangue e recuperado, iria para a enfermaria e os dois
debateriam em condições de igualdade.”
O próprio Ajax lista no vídeo suas
credenciais militares. Foi comandante de Infantaria de Selva na Amazônia, das
tropas na tríplice fronteira e da Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais. Foi
diretor de Educação Superior Militar do Exército e também comandante das no
Haiti (“Eu fui o último force
commander da missão”, diz).
Santos Cruz e Ajax eram recém-saídos da
ativa quando fizeram essas declarações. Assim como da reserva era o também
general Eduardo Villas-Bôas quando publicou o famoso tuíte-ameaça ao STF antes
do julgamento do habeas corpus que poderia antecipar a saída de Lula da prisão.
Mas os vídeos divulgados por eles em 2018 não se prendiam a isso. Ajax se
apresenta no início da gravação dizendo ser “o general Ajax”.
Ainda que parte grande dos militares
mantenha o apoio a Bolsonaro, o clima na comunidade de fardados mudou bastante
após três anos de gestão. Hoje, Santos Cruz afirma que Bolsonaro é despreparado
e dado à “sem-vergonhice”. Dias atrás, o comandante da Força Aérea Brasileira
(FAB), Carlos de Almeida Baptista Junior, achou por bem deixar publicamente
registrado que irá prestar continência a Lula caso o petista retorne à
Presidência.
A mudança de tom em relação a Bolsonaro e
ao PT ocorre ainda durante um governo que tem centenas de militares espalhados
pela Esplanada dos Ministérios, na presidência de estatais, em conselhos de
empresas públicas, em agências, autarquias e milhares de outros postos civis
bem remunerados da administração pública.
Houve uma nota assinada pelo ministro da
Defesa, o general Braga Netto, e pelos três comandantes das Forças Armadas
atacando a CPI da covid. Houve uma outra nota de Braga Netto tentando legitimar
a suspeitíssima campanha de Bolsonaro pelo voto impresso adotando como natural
a expressão bolsonarista “voto eletrônico auditável”.
Houve o general Pazuello, na época da
ativa, no comando do Ministério da Saúde. E também no palanque com Bolsonaro.
Dias atrás, o general de divisão da reserva
Otávio do Rêgo Barros, ex-porta-voz de Bolsonaro, publicou um artigo no jornal
“O Globo” tentado dissociar as Forças Armadas do que chama de “erros
grosseiros” de Bolsonaro. “Por mais influência que o estamento militar
detivesse junto à sociedade, não teria condições, nem pretensão, de orientar
milhões de escolhas”, escreveu.
Se Lula realmente vencer, talvez não seja fácil para os militares estabelecerem uma relação fluida com o novo governo. Mas colossalmente mais difícil, quiçá impossível, será tentar apagar os rastros de entusiasmo, participação e responsabilidade no governo Bolsonaro.
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