O Globo
Moïse Mugenyi Kabagambe foi torturado e
morto em 24 de janeiro. Naquele mesmo dia, depôs Jailton Pereira Campos,
atendente no quiosque Tropicália. Não sabemos o que declarou. Sabemos que, a 1º
de fevereiro, prestaria novo testemunho, este conhecido — e sob a intenção de
“retificar o termo anterior”. A razão: “esclarecer melhor os fatos narrados”,
pois não teria conseguido “extrair de forma clara o seu depoimento”.
No vídeo conhecido sobre a barbárie,
Jailton aparece, pedaço de pau na mão, em conflito iminente com Moïse. Teria
sido ameaçado pela vítima, que, a certa altura, pega uma cadeira como arma.
Outro dado relevante: Moïse abre a geladeira. Essa é igualmente a base
narrativa dos depoimentos dos três matadores. Jailton teria sido ameaçado.
Moïse, alterado, queria pegar cerveja, e não lhe fora permitido.
Ninguém poderá dizer que se trata de estratégia combinada. Mas é incontornável que, do ponto de partida em que Moïse seria agressor incontrolável, avança-se — nos quatro depoimentos — à configuração dele como tipo violento, beberrão e drogado, que estaria dormindo na areia e “queria subtrair bens do quiosque”. Seria ainda mentiroso. Diz Jailton “que o proprietário [do quiosque] não devia nenhum valor à vítima”.
Nenhuma novidade. A história de crimes como
esse é também a história das tentativas de criminalizar a vítima. E a
tentativa, nesse caso, beneficia-se das relações informais de trabalho. Ninguém
tinha contrato; tudo acertado com base em diárias calculadas por produtividade.
Não seria difícil que, desse arranjo arbitrário-precário, saíssem desacordos.
Moïse achava que lhe deviam. Como provar?
Como cobrar?
Uma informalidade a serviço da lógica
miliciana de exploração. Relata Jailton que “os envolvidos [os assassinos] não eram seguranças
do quiosque”. Dois dos quais, porém, a serviço de um policial, controlador do
quiosque contíguo, o Biruta, e de uma barraca na praia. Não eram seguranças,
não formalmente, como formalmente nada eram; mas, submetidos a regime de
trabalho desregrado e às exigências de esquema autoritário, estimulados a
mostrar serviço mercenário e ganhar pontos, não estariam ali também para zelar
pela “ordem” de espaço que tem dono?
Moïse foi cobrar? Como cobrar? Em
território sob mando? Moïse foi barbarizado para servir de exemplo?
A Orla Rio confirma a doença e admite a
falência do Estado. O quiosque Biruta tinha ocupante irregular. Terá o operador
responsável transferido o negócio — tudo por fora — no amor, ou sob coação? E
que solução administrativa pacificaria isso? Ficará pacificada, em metro com
senhor, a gestão do espaço doravante pela família de Moïse?
Um dos incômodos fundamentais na trama está
no tempo que se passou entre o crime, numa segunda, e seu conhecimento pela
sociedade, só no final daquela semana. Levaria ainda mais até que as imagens
fossem divulgadas. Esse período de cegueira temporal — que abrange o intervalo
entre o testemunho inicial de Jailton e sua retificação — planta desconfiança:
quem garante a integridade do vídeo?
A ausência dessa resposta não invalida a constatação:
o segundo testemunho de Jailton deu-se já sob os potencias efeitos — a possível
influência — das imagens, moldado talvez pela leitura enviesada daquele corte.
Terá sido esse depoimento condicionado pelo texto do vídeo conforme circulara?
Diz Jaiton “que as imagens comprovam o seu relato”. Moïse abre a geladeira, né?
Ladrão bêbado.
Nenhum depoimento é mais esclarecedor que o
de Aleson Cristiano de Oliveira Fonseca, vulgo Dezenove, um dos assassinos que
trabalhavam para o policial. (O outro é Tota, Brendon Alexander Luz da Silva,
atendente na Barraca do Juninho.) O matador é claro: o quiosque Biruta
pertenceria ao policial Alauir. Aleson era cozinheiro e garçom ali. No dia do
crime, contudo, “estendeu seu turno para tomar conta do local”, uma vez que
estaria havendo “muitos roubos e furtos na região”. Não era segurança, mas seu
escopo de atuação contemplava cuidar da área, no que decerto cabia evitar
problemas no pedaço.
Moïse seria um problema, pois começara a
“apresentar um comportamento fora do normal”, a “ameaçar”, a “consumir ainda
mais bebida alcoólica”. Aleson envolveu o Corpo de Bombeiros, ao afirmar que
sua vítima, na noite anterior, arrombara um posto da corporação para dormir e
que um bombeiro procurara Moïse para questioná-lo, mas que, ao ver o estado do
invasor, desistira.
Como é?
Até agora, o Corpo de Bombeiros não se
pronunciou; mas deveria, já que vai enredado numa trama atroz que desonra um
morto. Onde está o bombeiro que confirmaria o arrombamento?
Aleson já foi pego em ao menos uma mentira,
pois contara ter ido à Defensoria Pública de Bangu, dois dias após o
assassinato, e informado sobre sua participação no crime, manifestando o desejo
de se entregar, orientado, no entanto, a ir embora, pois nada haveria em seu
desfavor. A Defensoria nega que isso — seria um escândalo — tenha ocorrido.
E o Corpo de Bombeiros? Ficará mesmo em
silêncio?
O irmão da vítima, em entrevista à CBN,
afirmou que Moïse dormira em casa e que fora ao quiosque cobrar dívida. Morreu
— tudo indica — porque, numa cidade cujo chão público tem proprietário,
avaliou-se que seu corpo preto poderia servir para demarcação.
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