Revista Será? (Penso, logo duvido)
O surgimento do Partido Comunista do Brasil
(PCB) completa cem anos, em março de 2022. O
partido nasceu sob o influxo da Revolução bolchevique de 1917 e se vinculou a
Internacional Comunista (IC) comandada pela URSS. Durante décadas, foi o maior
referencial político da esquerda no Brasil. O PCB não nasceu de uma secessão no
interior de um Partido Socialista já existente, como em boa parte do Ocidente.
Sua gestação advém do deslocamento de algumas lideranças do anarquismo,
seduzidas pela onda bolchevique.
No início, o discurso e a postura do
partido guardavam os traços duros da luta operária, central no ideário
comunista, fulcro da revolução proletária contra o capitalismo. Depois de
alguns anos de tateantes formulações sobre a realidade brasileira, os conflitos
e lutas cívico-militares que marcaram a década de 1920, cujo corolário foi a
Revolução de 1930, acabaram por impactar decisivamente a vida do PCB. A adesão
de parte dos integrantes do “tenentismo”, dentre eles, o capitão Luiz Carlos
Prestes, mudou o perfil da direção partidária bem como a orientação do partido
em relação à realidade brasileira, sem abandonar a perspectiva de “revolução
global” emanada da IC. É desse momento – outubro de 1935 –, a fracassada
tentativa de tomada do poder por meio de uma insurreição armada, conduzida a
partir dos quartéis. Depois disso, o PCB viveu a maior parte do tempo na
ilegalidade, ascendendo à vida legal entre 1945 e 1947, quando participou da
Assembleia Constituinte de 1946, com 14 representantes. Volta à ilegalidade no
contexto da “guerra fria” e irá conquistar vida legal em 1985, apenas 7 anos
antes do Congresso que oficialmente definiu o fim de sua trajetória.
O PCB carregou, em toda sua história, uma “dupla alma” (Gildo Marçal Brandão), que entrelaçava a convicção de que fazia parte da revolução comunista mundial e a elaboração de uma estratégia de ação voltada para a transformação da realidade brasileira. A identidade do PCB guarda, portanto, uma dimensão de reprodução doutrinária do ideário comunista e outra dimensão de “tradutibilidade” com vistas à mediação desse ideário frente à realidade brasileira. O PCB participou dos esforços intelectuais que visavam à compreensão da realidade brasileira e foi um dos poucos partidos a oferecer uma leitura específica dessa realidade, com vistas à sua transformação.
Nasce desse esforço uma cultura política
bastante particular que Raimundo Santos definiu como “pecebismo”: uma tensa
convivência entre uma forte adesão à retórica marxista, filtrada pela leitura
do que vinha da URSS – primeiro leninista e depois estalinista –, e uma
inclinação voltada a formular estratégias políticas para o país, definidas a
partir de uma simbiose entre a “questão nacional”, ou seja, a luta contra o
imperialismo, e a “questão democrática”, projetada contra a oligarquização e a
incivilidade da política brasileira. Pela atenção que dedicava a desvendar a
natureza da realidade brasileira e, mesmo na ilegalidade, pela presença de seus
dirigentes e militantes na vida política, o que abria espaços de “contaminação”
e convergência com outras culturas políticas, o “pecebismo” foi fator
civilizador da trajetória do comunismo no Brasil, ou seja, ajudou a civilizar a
sua “alma” originária.
Durante o século XX, o Brasil não conheceu
o protagonismo de um movimento de caráter abertamente revolucionário que
tivesse alcançado êxito, fosse ele conduzido pelo operariado ou por camponeses,
ou ainda por uma aliança entre ambos, como se julgava possível pela cartilha da
revolução bolchevique. Por outro lado, uma linha política identificada com o
“socialismo democrático” nunca assumiu contornos mais amplos, permanecendo
eclipsada na maior parte da história política do país. Capitaneada pelo PCB, a
esquerda teve na chamada “revolução brasileira”, de caráter nacional e
anti-imperialista, seu principal projeto de transformação da realidade
brasileira. A noção de “revolução brasileira” guardava a perspectiva de um
processo substantivo de transformações voltado para a emancipação da economia
nacional, mas simultaneamente concebido como confrontação e antagonismo às
elites que mantinham o país numa situação de atraso e de subdesenvolvimento, na
linguagem da época. Marcada por diversas ênfases e tendências ideológicas, a
“revolução brasileira” era entendida pelo PCB como “processual”, ou seja,
essencialmente “etapista” ou gradualista, mas com traços teleológicos que
apontavam para a sociedade socialista.
Depois da ditadura varguista do Estado Novo
(1937-1945), esse projeto foi ganhando, paulatinamente, traços de uma
estratégia nacional de desenvolvimento que galvanizou diversos setores sociais
e políticos do país, especialmente nacionalistas e trabalhistas, além dos
comunistas. No âmbito do PCB, a Declaração de Março de 1958 definiria
a estratégia nacional e democrática de desenvolvimento como o núcleo central da
“revolução brasileira”. Essa foi, em síntese, a grande orientação política que
marcou a história do PCB até o golpe de Estado de 1964.
Era uma estratégia que visava combinar o
impulso à revolução, concebida em sua etapa nacional e anti-imperialista, com
uma postura política democrática e reformista, mas vivenciada como ação de
perfil revolucionário. Mantido o arsenal marxista-leninista como referencial
doutrinário na abordagem dessa estratégia, sobrepôs-se um conjunto de
ambiguidades de difícil equacionamento. De um lado, a ênfase no primeiro
aspecto (impulso à revolução) não deixava de lado a sedução por uma ação
política mais radicalizada e, em certo sentido, inclinada à adoção de um
“revolucionarismo” que começava a ganhar força mediante o impacto da revolução
cubana de 1959; por outro lado, a ênfase no segundo aspecto (a postura
democrática e reformista), abria espaço para o partido fortalecer suas ações em
direção ao que viria a ficar conhecido como “esquerda positiva” (Gildo Marçal
Brandão), voltada para o arranjo político e para os avanços parciais
cumulativos. A convivência desses dois polos no interior do PCB não suportaria
o golpe de 1964: o “revolucionarismo” iria explodir nas dissensões partidárias
que viriam em seguida, das quais a mais expressiva seria a Ação Libertadora
Nacional (ANL), liderada por Carlos Marighella; por outro lado, a vertente da
“esquerda positiva”, de forma intencional ou não, iria marcar o comportamento
do PCB na luta contra a ditadura, tendo como base de sustentação a linha de
“frente ampla contra o fascismo”. É como um adendo a ela que emergiria, mais
tarde, a influência do “eurocomunismo” dentro do PCB. De toda forma, o sucesso
da linha democrática e reformista foi capaz de organizar e mobilizar amplas
forças políticas contra a ditadura e, por fim, vencê-la politicamente. Não
resta nenhuma dúvida de que este foi o maior êxito político de toda a
trajetória histórica do PCB.
Mas essa história tem outras variáveis e
complicadores. O golpe de 1964 e o chamado “milagre econômico” promovido pela
ditadura entre o fim da década de 1960 e o início da década de 1970 provocariam
uma verdadeira “revolução” nas estruturas da sociedade brasileira. Os militares
capturaram para si e deram outro significado à ideia de “revolução brasileira”.
O que se ambicionava no projeto da “revolução brasileira” acalentado pela
esquerda viria a ser redesenhado pelos militares como uma “modernização
conservadora”, de carácter autoritário, que alteraria integralmente a
fisionomia da sociedade. Assim, a “revolução brasileira” acabou sendo realizada
à revelia do PCB e por forças políticas que lhe foram permanentemente
antagônicas, invertendo seu sentido original. O resultado foi um crescimento
econômico inaudito, mas menos direitos e liberdade, mais desamparo social e
mais miséria para as classes subalternas.
Retomar o eixo da “revolução brasileira”
implicava reconhecer tudo isso e admitir que aquela profunda mudança colocaria a
“questão democrática” no centro da nova linha política do partido para
enfrentar a ditadura e pensar mais além. A estratégia de luta do PCB, pela via
da democracia, ganharia assim um sentido mais contingente e direto que
constrangiria a sua “outra alma” voltada para a realização de uma “revolução
comunista” tout court. Combinar essas duas dimensões ficaria cada vez mais
difícil, especialmente quando a estratégia de enfrentamento contra a ditadura,
com base no aproveitamento do espaço eleitoral, começava a dar frutos,
possibilitando avanços à oposição.
As profundas mudanças tecnológicas e o
advento da globalização, coincidindo com o progressivo colapso da URSS,
acabaram por incentivar a reflexão sobre novas estratégias de desenvolvimento
com vistas à superação das crises estruturais da economia e da sociedade
brasileira, impulsionando uma reorientação geral, mais aberta, mais moderna,
mais liberal-democrática. A opção pela democracia coincide com essas profundas
mudanças e passa a colocar em questão tanto a vinculação do PCB com a antiga
URSS quanto a validade de manutenção da estratégia nacional-desenvolvimentista,
como havia sido postulada desde 1958 e que tinha no Estado um locus fundamental
para a promoção das transformações econômicas da sociedade.
Resistindo à ditadura sem optar pelo
caminho armado, o PCB demonstrou maturidade política e a sua tática de luta
democrática começou a ganhar “ares de teoria”, como afirmou Luiz Werneck
Vianna. A adoção do tema democrático, com a assimilação da concepção de que a
democracia deveria ser vista como um “valor universal” (Carlos Nelson Coutinho)
tardou algum tempo para ser assimilada de maneira integral. A diluição do
conservadorismo marxista-leninista no conjunto da direção partidária do PCB
somente seria efetiva nos Congressos prévios à sua superação orgânica, com o
abandono do nome e dos símbolos que acompanharam a trajetória do partido e todo
movimento comunista mundial.
Paradoxalmente, o esgotamento do PCB como
ator político ocorre quando o país conquista a democracia por meio da política
e não das armas: o êxito de sua tática coincide com seus estertores, motivado
por variáveis que estavam fora do seu controle, pela inércia na adesão aos
últimos anos do poderio soviético e por inúmeros equívocos de condução política
interna que provocaram um retardo fatal no seu processo de renovação. Com o fim
das circunstâncias que lhe deram vida, tanto as nacionais quanto as
internacionais, o PCB encerraria seu ciclo, perdendo suas bases sociais e vendo
definhar seus apoios intelectuais, incapaz de evitar que escorresse por entre
os dedos sua “grande política” de enfrentamento e superação da ditadura.
Nos últimos anos, o PCB permaneceu buscando
sua inspiração nas reformas adotadas por Gorbachev na URSS. Talvez tenha sido
um dos partidos comunistas mais gorbachevianos do ciclo de colapso do comunismo
mundial. Por isso vocalizou mais uma proposta de “socialismo renovado” do que
desafiou os entraves do processo de democratização. O que partidariamente nasce
da morte do PCB é tanto um desdobramento especulativo e tardio da situação
soviética quanto uma metamorfose do aparelho partidário, não a
emergência de uma “nova formação política”. Comparando o fim do Partido
Comunista Italiano (PCI) com o fim do PCB observa-se que na Itália há uma
reivindicação da história do reformismo dos comunistas italianos – de Togliatti
a Berlinguer – como elemento essencial de diálogo e composição com outras
forças políticas. Enquanto no PCB o que mais se reivindicou foram os vínculos
com as propostas gorbachevianas.
As reformas de Gorbachev, por fim,
fracassaram e com elas o socialismo renovado. Com o colapso da URSS, entre
1989 e 1991, os impulsos dessa retórica externa desapareceriam, cancelando a
possibilidade de se manter o antigo esteio internacional. Internamente, o
cenário político estava completamente alterado e a competição
político-eleitoral passava a ser um elemento central. A essa nova fase
correspondia também um novo cenário internacional de crise geral dos paradigmas
e de uma mudança inaudita dos mecanismos de produção e reprodução da economia
em larga escala: a globalização dos mercados e as necessidades de reinserção
nessa nova economia, de padrão tecnológico novíssimo, passaram a dar uma nova
direção ao mundo.
Haveria que buscar uma reinvenção da
política de esquerda no Brasil e isso acabou se tornando impossível por conta
da fragilidade com que o PCB chegou ao final do seu ciclo histórico. Havia
sinais claros de uma “ruptura inconclusa”. Imaginou-se que a proposição de uma
“nova formação política” pudesse galvanizar novas lideranças políticas, mas
isso também iria fracassar. Ultrapassado o projeto nacional-desenvolvimentista
bem como o falido “socialismo renovado”, a estranha adoção da noção de
“radicalidade democrática” se constituiu numa fórmula “solta no ar” porque
representaria um giro de 180 graus na política pecebista, mais afeita a acordos
na sociedade política do que ao apoio à emergência de novos sujeitos
políticos no terreno da sociedade civil. A
sombra do PCB continuaria assim a atormentar por mais algum tempo a
possibilidade de um novo caminho e, gradativamente, ficava claro que as
dificuldades que viriam a se impor seriam claramente intransponíveis.
O PCB é parte da história do século XX e
morreu com ele. Mas nem tudo que fenece desaparece integralmente. Uma visão da
História como “tábula rasa” será sempre voluntarista, quando não reacionária.
Lembrar hoje a trajetória do PCB enseja um pensamento intrigante que poderia
ser problematizado com o auxílio da linguagem poética: qual voz pode nos
desafiar e dizer “ano passado eu morri, mas este ano eu não morro”?
*Alberto Aggio é Professor Titular de
História da América Latina contemporânea na UNESP
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