Folha de S. Paulo
Ultradireita e esquerda petista subordinam
relações internacionais a preferências de natureza ideológica
Bolsonaro sentou-se à longa mesa de
Putin para
expressar "solidariedade" à Rússia, às vésperas da invasão da Ucrânia.
Depois, quando as cidades ucranianas enfrentavam bombardeios, o Itamaraty
conferiu substância à palavra do presidente. Simultaneamente, a bancada de
senadores do PT reproduziu as cínicas justificativas do Kremlin para a guerra
de agressão. Só ingênuos incorrigíveis ficaram surpresos.
A ultradireita brasileira cindiu-se em duas facções. Uma, autenticamente "olavista", posicionou-se contra a Rússia, devido à aliança entre o Kremlin e os odiados chineses. A outra, com a qual se perfilou Bolsonaro, escolheu o lado de Putin, curvando-se às simpatias de Trump e às estreitas ligações do líder russo com partidos da extrema direita europeia.
O PT não se dividiu, mas exercitou os
esportes da simulação e da ofuscação. A nota
putinista dos senadores foi apagada e revertida após um pito da
direção nacional. Os gênios que a escreveram, operando em modo automático,
esqueceram de considerar seus previsíveis efeitos sobre a campanha eleitoral de
Lula. Mas ela expressava a posição genuína do partido –e, não por acaso, Lula
alinhou-se a Bolsonaro na negativa de condenar a invasão de uma nação soberana.
O Brasil oficial cobre-se de vergonha. Há
quase duas décadas, na hora da invasão americana do Iraque, a representação
brasileira na ONU juntou-se à França e à Alemanha na justa condenação da guerra
de escolha –e isso quando a nação agredida vivia sob a ditadura sanguinária de
Saddam Hussein. Agora, porém, o governo brasileiro optou pela solidariedade com
o agressor.
A China absteve-se na votação das Nações
Unidas. O Brasil
votou pela resolução condenatória, mas apenas para inglês (digo, americano)
ver. Na prática, o Itamaraty criticou as sanções à Rússia e a entrega de armas
à Ucrânia, pedindo um cessar-fogo. A ilusória "neutralidade"
bolsonarista forma o roteiro dos sonhos de Putin: sem sanções dissuasórias e
enfrentando um país carente de armas, a Rússia completaria mais facilmente o
assalto militar e imporia um cessar-fogo baseado numa capitulação versalhesa da
Ucrânia.
A nota dos senadores e os artigos assinados
por quadros do PT indicam que, se Lula já
ocupasse a cadeira de Bolsonaro, a postura brasileira seria essencialmente a
mesma. Por meio das acrobacias retóricas habituais, o Brasil da esquerda também
ofereceria amparo às mentiras emanadas de Moscou. No lugar da Constituição, que
define o respeito à soberania e autodeterminação das nações como pilares da
política externa nacional, a ultradireita e a esquerda petista subordinam
nossas relações internacionais a preferências de natureza ideológica.
João Pereira Coutinho, perspicaz, atribuiu
a confraternização entre esquerda e direita à
"doença" da "nostalgia" (Folha,
28/2). Contudo, no caso brasileiro, há mais que a utopia de restaurar o
passado perdido da URSS ou do Império Russo. A política externa do governo
Bolsonaro não é formulada em Brasília, mas na Flórida, em Mar-a-Lago, base de
Trump. Já a política externa do PT é delineada lá perto, em Havana, o que
também explica o apoio inarredável a Maduro e Ortega.
As narrativas de guerra fabricadas no
Kremlin seguem ecoando, bem além da Rússia. A Folha publicou diversos
artigos dos papagaios de Putin –e sem nenhum protesto do comitê de Jornalistas
pela Censura Virtuosa (Jocevir), que só ergue sua caneta vermelha para vetar as
opiniões de críticos antirracistas das políticas identitárias.
Tudo que é de interesse público e não viola
as leis brasileiras deve ser impresso. Os textos dos escribas putínicos são de
interesse público pois descortinam a extensão da miséria política nacional.
Funcionam como provas documentais do encontro, na mesa imperial de um
anti-imperialismo de araque, da ultradireita bolsonarista com a esquerda
petista.
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