sábado, 5 de março de 2022

Eduardo Affonso: Marinheiros ou ratos

O Globo

Não fosse a Argentina estar sob uma ditadura nos anos 1970, talvez Alfredo Astiz tivesse sido apenas mais um militar da Marinha — hoje na reserva, tomando mate com os amigos no Clube Naval. Não fossem o despudor e a corrupção dos governos petistas, talvez Jair Messias Bolsonaro continuasse a ser só um deputado do baixíssimo clero — hoje num churrasco com os filhos na Barra da Tijuca, contando piadas de quinta série e discutindo pequenos golpes contra o Erário. Mas havia uma ditadura no caminho de Astiz, e sua vocação se revelou: torturador e assassino. Havia um PT no caminho de Bolsonaro. A retórica o tirou do pelotão dos candidatos folclóricos, e uma facada o levou ao Palácio do Planalto.

“A ocasião faz o furto; o ladrão já nasce feito”, escreveu Machado de Assis. Feito, mas inconcluso — depende de meios, motivo e oportunidade.

Volodymyr Zelensky era, até outro dia, desconhecido fora dos círculos onde se discute geopolítica. Poderia ter sido advogado (é formado em Direito), ter permanecido como ator e diretor (foi um humorista popularíssimo em seu país) — mas fundou um partido e assumiu, na vida real, o papel que interpretava na ficção, o de presidente. No caminho de Zelensky havia uma pedreira: Vladimir Putin. Que, não fosse por uma perestroica em seu caminho, poderia estar aposentado como agente da KGB, tomando vodca numa dacha com os velhos camaradas e falando mal do capitalismo.

“Eu sou eu e minha circunstância e, se não salvo a ela, não me salvo a mim”, escreveu Ortega y Gasset. A circunstância tragou Astiz, que sequestrava e torturava opositores do regime, e os atirava, vivos, ao mar. Deu pedestal a Bolsonaro, que passara a vida ao rés do chão — um pedestal para o qual lhe faltam estatura, compostura, decoro. Abriu caminho para que o Putin burocrata desaguasse no déspota que manda matar quantos ameacem seu poder, no megalomaníaco que pode empurrar o planeta a uma catástrofe nuclear. E fez de Zelensky o líder improvável, o herói inesperado na resistência a uma tirania.

Lula — “é inadmissível que um país se julgue no direito de instalar bases militares em torno de outros países” x “é absolutamente inadmissível que um país reaja invadindo outro país” — e Bolsonaro —“somos solidários à Rússia” x “não vamos tomar partido” — estão cada vez mais próximos um do outro na tibieza e na ambiguidade e mais distantes de se salvar e às suas circunstâncias. Na cola desses dois, o momento tem se encarregado de unir os antiamericanos atávicos e os de ocasião, irmanados no mantra de que é a Otan o grande satã, que na invasão da Ucrânia não há mocinhos nem bandidos, que o caso é “complexo”. Vai mostrar quem acredita na soberania e autodeterminação dos povos, na solução pacífica de conflitos, no respeito às leis internacionais — e quem não.

“É na tempestade em alto-mar que se sabe, de fato, quem é marinheiro, quem é rato”, reza o ditado. A tempestade na Ucrânia é nossa circunstância; nos oferece os meios, os motivos, a oportunidade. E tem nos permitido ver, por inteiro, quem é rato, quem é marinheiro.

 

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