Valor Econômico
Governo lança plano de fertilizantes em
momento crítico
Da cadeira na qual estava recostado
observando o movimento, o vendedor de mudas, sementes e insumos agrícolas
conseguia avistar do outro lado da avenida o edifício que hoje abriga a Escola
Superior de Defesa.
A loja fica em frente ao amplo terreno que
já sediou a Escola Superior de Guerra (ESG) e a extinta Escola de Administração
Fazendária (Esaf), onde hoje grande parte das atenções devem estar na guerra
iniciada com a invasão da Ucrânia pela Rússia. E para lá chegar ele teria
apenas que atravessar a via expressa que liga o bairro do Jardim Botânico de ponta
a ponta. Caminhada curta, menos de 300 metros, mas precisaria enfrentar a
chuva.
Coisas de Brasília. Nesta época do ano, é possível safar-se de uma chuva torrencial apenas mudando de calçada.
É na capital federal, também, onde cidadãos
comuns e integrantes dos mais altos escalões da República podem discutir os
mesmos assuntos, de acordo com seus respectivos pontos de vista, apenas
separados por um muro ou um espelho d’água. Mas, ao menos em relação ao
fornecimento de fertilizantes, a preocupação de diversas autoridades com os
efeitos da guerra ainda não ultrapassou essas barreiras.
“Não
vai faltar fertilizante russo”, assegurou, confiante e com a resposta na ponta
da língua, o comerciante. “Eles vão parar de vender para os países da Otan, mas
não para o Brasil. Não subiu o preço ainda e não vai parar de chegar produto de
lá.”
A Rússia é fornecedor estratégico do Brasil
nesse segmento. O lojista sabe disso. Porém, se atravessar a avenida, talvez
mude de opinião.
Isso porque essa tranquilidade não existe
no governo e no Congresso, na bancada ruralista, nem entre alguns oficiais das
Forças Armadas. Até porque ainda não é possível ter total clareza sobre o
impacto das sanções impostas à Rússia pelos Estados Unidos e seus aliados.
A preocupação vai além da inflação.
Alerta-se para um potencial cenário de desabastecimento. Em outras palavras,
para o risco de maiores dificuldades no acesso a alimentos pelos brasileiros
mais pobres: fome.
Diversos governos identificaram esse
gargalo para a produção nacional de alimentos, a dependência externa de
fertilizantes, mas não o atacaram de forma adequada.
Os primeiros planos nacionais de
fertilizantes foram implementados em 1974 e 1995. Segundo dados da Secretaria
de Assuntos Estratégicos (SAE) da Presidência, eles demandaram investimentos de
US$ 3,5 bilhões e viabilizaram uma alta de 40% da produção nacional desses
produtos entre 1987 e 2005.
Com isso, o Brasil foi quase
autossuficiente no início dos anos 1980. Porém, a demanda cresceu muito mais
rápido do que a oferta e o país se tornou grande importador de um produto
dominado por poucos países e empresas.
O tema voltou a ganhar atenção em meio à
alta dos preços de alimentos durante a crise financeira mundial de 2008. Pouco
antes de deixar o Palácio do Planalto, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da
Silva prometeu a auxiliares deixar pronta uma política voltada ao setor. No
entanto, diversos ministros estavam se desincompatibilizando para disputar as
eleições, algo que se assemelha à situação atual, e o compromisso acabou se
perdendo entre outras prioridades do petista.
Eleita, Dilma Rousseff recolocou o assunto
sobre a mesa. Inclusive explicitando a intenção de acelerar a exploração de
reservas de potássio localizadas na Amazônia - algo hoje condenado por alas da
oposição. O projeto tampouco avançou.
Tempo precioso foi desperdiçado pelo atual
governo. O Ministério da Agricultura procurou o Palácio do Planalto alertando
sobre a necessidade de concepção e implementação de um novo Plano Nacional de
Fertilizantes em maio de 2020. Concebeu-se um grupo de trabalho, que começou a
se reunir um ano depois. Um novo plano será lançado só agora, nos próximos
dias, justamente em meio ao esforço do governo para aprovar na Câmara o projeto
que permite a exploração mineral em terras indígenas.
Quem acompanha o assunto espera que o
governo aponte a necessidade de ampliação de estudos geológicos e de discussão
sobre a atual legislação ambiental, iniciativas que tendem a enfrentar críticas
de ambientalistas. Nos últimos meses, autoridades também tentaram fazer uma
avaliação sobre a concentração econômica do setor. Além disso, foram estudadas
deficiências logísticas para a distribuição de fertilizantes nos Estados do
Mato Grosso, Tocantins, Maranhão, Piauí e Pará.
Por outro lado, o Executivo constatou um
desperdício de cerca de 40% no uso de fertilizantes no Brasil, decorrente da
falta de novas tecnologias de produção e de utilização desses produtos. Número
chocante. Por isso, aponta-se a necessidade de desenvolvimento de tecnologias
que reduzam custos e aumentem a proteção do meio ambiente.
O Brasil também vai precisar assegurar o
fornecimento de gás natural à indústria de fertilizantes e, sob a ótica de
autoridades federais, discutir a tributação do setor. Este pode ser um novo
ponto de atrito entre o governo Bolsonaro e os Estados, pois o peso do ICMS na
composição do preço final do produto é apontado como um vilão. O mesmo que se
vê em relação aos preços dos combustíveis.
De forma compreensível, embora lamentável,
as tensões pré-eleitorais já começam a atrapalhar as discussões. Como
resultado, as bancadas podem se ver impelidas a esperar o posicionamento
público dos seus pré-candidatos, para então definirem como irão votar propostas
relacionados ao novo plano. Ninguém no Congresso esqueceu o constrangimento
enfrentado pelo PDT quando Ciro Gomes suspendeu sua pré-campanha durante a
votação da PEC dos Precatórios, para forçar a mudança de postura dos
correligionários que haviam apoiado o governo num primeiro momento.
Interesses locais também tendem a ditar o
comportamento de deputados e senadores. Novamente o Brasil caiu na armadilha de
discutir soluções para problemas estratégicos sob intensa pressão. Desta vez,
por se tratar da segurança alimentar da população, o desafio é ainda maior.
Afinal, nas contas do próprio Executivo, neste momento o Brasil tem estoques de
fertilizantes suficientes somente até outubro.
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