O Estado de S. Paulo.
Retrógrado, Putin quer ser tratado como poder não econômico, capaz de consolidar noções de honra e coexistência pela ferocidade militar
Quem só fala a verdade quando quer não se
importa de mentir quando precisa. A reputação nada vale onde o oportunismo
compõe o tipo sem compromisso, a mistura híbrida de esquerdista-direitista,
liberal-intervencionista, paz e amor-belicista, constitucionalista-compadraste
e cristão que não acredita no inferno. Vladimir Putin cavalga um cavalo morto
cujo galope medonho levará a Rússia ao abismo.
A cortesia deste ator dúbio e compulsivo
com a pátria é o engajamento brutal e “sincero” em empreendimentos
egocêntricos. Engajamento fanático que dá ao crédulo a impressão de ser um
forte. Cão de guarda da mentira, bobo da corte da verdade, tolera-se tudo em
democracia extraviada.
O engajado se encaixa rápido onde poucos pairam acima do seu tempo, têm mínima cultura clássica e não veem o orgulho como aristocracia da honra pessoal. É a síntese do mundo imperfeito do carreirista que se dá por esclarecido. Entusiasta dos atalhos, ele amontoa tudo e roda como moinho. Se o herói é ruim, ele se convence de que é um ruim melhor, pois o outro é o ruim deles.
O engajado é o principal personagem com
jurisdição sobre o mundo cingido. Sua tolerância a risco é grande. Ganha espaço
nas nações onde a estratégia de defesa externa não é determinada por cálculos
de inteligência geopolítica ou interesses socioeconômicos, mas pelo realismo de
circunstância e o defeito moral do governante injusto.
O pano de fundo do conflito Rússia-otan,
que pegou a Ucrânia para Cristo, é a força do engajado, que tolera tudo, em
especial a intolerância. Obcecado em encaixar a realidade na sua verdade, se
encontra obstáculo, entra em pane e, ao invés de parar, atropela. Colin Powell
errou e se arrependeu por ter metido os EUA no atoleiro do Iraque. Putin não se
arrependerá. Escravo hereditário da pior burocracia, come no prato que Lenin e
Stalin comeram e joga os restos na cara da Ucrânia. Mesmo com a
autodeterminação definida desde 1918, a Ucrânia sempre foi vilipendiada pelos
governos russos.
Governo cercado de engajados em ilusões de
ótica e manipulação erra mais. Misturado com armas atômicas e vassalos e
indiferente aos melhores valores pactuados pelo mundo democrático e comercial,
não respeita acordos e deve achar ridículo os EUA devolverem o Canal do Panamá
e a Inglaterra, Hong Kong. Mais ainda conspiram contra a bela e oprimida
Rússia, memórias do subsolo dos que partiram para cima de Dostoievski, Boris
Pasternak, Andrei Sakharov.
O poder autoritário admira o líder plano,
chato, profissional da presença, intimidador, inimigo dos valores individuais,
do vigor da pessoa livre. Difícil não se incomodar com o torpor de ver a vida
mover em direção a outros caminhos como fez Leon Tolstoi para se livrar do
czarismo e Vladimir Maiakovski dos patrões de Putin.
Lembro um gigante que conhece bem o agir
feito doido do perverso em política. Gulag, as pessoas sabiam que estava lá,
ainda que um arquipélago muito distante, mas, psicologicamente, fundido ao
continente – um mesmo país, invisível e imperceptível.
Acolhido pelo Ocidente capitalista mesmo
sem aceitar sua cultura, não podendo voltar ao seu país socialista, por ser
perseguido por sua cultura, encontra forças para criticar a decadência
espiritual do mundo. Reencontrou seu país após o exílio e, descontente,
expressa sua insatisfação com o fracasso que é a educação do povo, corrupção,
desdém com a democracia entregue a plutocratas, herdeiros do nacionalismo
imperial cujo orgulho está na ponta de armas e rublos de origem duvidosa. E se
faz novamente malquisto. Inconveniente, mordaz, solitário entre compatriotas
arrogantes, metidos em negociatas.
Vê sua terra longe da sonhada tradição
religiosa e mística, cultura e destino únicos com vocação civilizatória
destruídos por estúpidos governantes. Nunca deixou de pensar e defender a
coexistência pacífica com sua Rússia, cultura antiga, profunda e enraizada em
sua autonomia, que se espalhou por grande parte da superfície da terra,
misturando em si um mundo autônomo, cheio de nuances e surpresas para o
pensamento ocidental.
Intelectual usado que não se deixou usar,
disponível para boas ideias nacionalistas, vacinado contra humores totalitários,
de pé, eis Alexander Solzhenitsyn, capitão da artilharia avançada do exército
russo na Segunda Guerra. Vencedor que terminou prisioneiro por escrever cartas
de crítica ao tirano Josef e seu bigode. Um cidadão desagradável contra o
desmancha prazer do despotismo. Preso no Casaquistão, submetido a trabalho
forçado, conheceu o Gulag. Acolhido na Europa, ganhou o Nobel, exilou-se no
interior dos EUA. Urso na Rússia sempre foi o poeta, livre, humanista,
religioso.
Não há nova ordem mundial, mas sim o ostracismo
da Rússia sufocada pela brutalidade de um alheio à afeição. Desinteressado de
questões culturais, econômicas e comerciais, Putin confunde sua decadência
pessoal com a do país. Retrógrado, quer do mundo um favor complacente: ser
tratado como poder não econômico, acultural, capaz de consolidar noções de
honra e coexistência pela ferocidade militar. Um nostálgico do conflito, a
utopia do fanático.
*Sociólogo
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