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A verdadeira herança maldita
O Estado de S. Paulo
Bondades eleitoreiras e incontáveis erros acumulados em quatro anos formam o legado desastroso de Bolsonaro para o próximo governo
Uma conta de pelo menos R$ 82,3 bilhões
será passada a quem assumir a Presidência da República em 1.º de janeiro. Esse
é o custo, por enquanto, das bondades eleitorais do presidente Jair Bolsonaro.
Sua campanha de reeleição, extremamente cara, tem sido e continuará, nos
próximos anos, sendo financiada com recursos públicos. A soma inclui R$ 41
bilhões da parcela complementar do Auxílio Brasil, R$ 12 bilhões do reajuste
dos servidores, R$ 1,9 bilhão do auxílio-gás e R$ 27,4 bilhões de redução do
Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI). Se a apuração confirmar as
atuais pesquisas de intenção de voto, o sucessor de Bolsonaro terá vários
motivos para falar de uma herança maldita.
Essa herança resultará, em grande parte, de
medidas improvisadas, como têm sido, com frequência, as iniciativas
presidenciais no atual mandato, iniciado em 2019. Nunca houve, nesse período,
um plano de governo, com metas, programas e projetos articulados. Nem a saúde
fiscal, uma bandeira sustentada com razoável constância pela equipe econômica,
tem sido levada em conta, normalmente, nas decisões do presidente. Mesmo com
alguma resistência, o ministro da Economia, Paulo Guedes, acabou geralmente
acatando as pretensões de seu chefe.
Algumas decisões, como o pagamento do auxílio-gás às famílias pobres, são defensáveis, mas nunca foram integradas em programas de desenvolvimento econômico e de inclusão social. Nem poderiam ter sido, porque programas desse tipo nunca foram formulados. Tributos foram cortados, ocasionalmente, para conter aumentos de preços ou para beneficiar o sistema produtivo. Mas foram sempre soluções tiradas de algum bolso de colete. Até hoje, nada permite, por exemplo, vincular a redução do IPI a uma política de recuperação e de modernização do enfraquecido setor industrial.
Nem se poderia falar de uma política desse
tipo. A palavra política raramente foi usada, nos últimos três anos e quatro
meses, para denotar um conjunto de ações administrativas com objetivo bem
definido e relevante. A constância política tem sido observada, muito mais
frequentemente, em outro cenário, o das ações do presidente voltadas para
ambições eleitorais e para a preservação de interesses familiares. Quando se
trata desses assuntos, o presidente mostra dedicação permanente ao cálculo, às
manobras, à mobilização de seguidores e às tentativas de envolver os militares
em questões normalmente reservadas, nos países democráticos, à autoridade
civil.
Sem planejamento, o presidente deixará como
legado os custos de ações improvisadas e de erros acumulados em quatro anos.
Para começar, o poder federal terá problemas, em 2023, em relação ao teto de
gastos. Será difícil acomodar no limite constitucional as bondades deixadas
pelo atual presidente. Já se fala em mudar a regra do teto, mas isso apenas
disfarçará o problema fiscal. O Tesouro continuará afetado pelo aumento de
gastos e pela redução do IPI.
Confrontado com o desarranjo fiscal, o
sucessor de Bolsonaro terá dificuldade para implantar um plano de governo.
Pelas projeções do mercado, a economia crescerá só 1% em 2023 e modestos 2% em
2024. Serão taxas insuficientes para um grande ganho real de arrecadação. Além
disso, a inflação, segundo as estimativas, baterá em 4,10% no próximo ano e
ainda ficará em 3,20% no seguinte, superando a meta oficial (3%) nos dois
períodos. Os juros básicos, elevados para conter os preços, estarão em 9,25% no
fim de 2023 e em 7,50% no encerramento de 2024. Isso encarecerá o crédito,
travará o crescimento econômico e manterá muito caro o financiamento do
Tesouro.
Metade do novo mandato estará prejudicada,
portanto, pela herança da atual administração. O quadro poderá ser menos tenebroso,
em 2024, se o presidente eleito tiver um plano crível de correção fiscal e de
desenvolvimento. Populismo poderá atrair votos, mas quem movimenta o dinheiro e
financia o Tesouro exigirá mais que isso. Qualquer candidato terá de levar em
conta essa diferença, se quiser iniciar o mandato com vento a favor.
O valor inestimável da imprensa livre
O Estado de S. Paulo
O extremismo nas redes sociais, a desinformação e a agressividade de autocratas e iliberais estão deteriorando um dos principais pilares da democracia
A democracia e a liberdade de imprensa são
tão visceralmente ligadas que é impossível dizer qual é a causa e qual a
consequência. Os dados comprovam as associações entre a imprensa independente,
democracias vibrantes e corrupção limitada. Não surpreende, portanto, que a
recessão da democracia na última década seja espelhada pela deterioração da
liberdade de imprensa. Essa deterioração é, a um tempo, sintoma e causa dessa
recessão.
O extremismo nas redes sociais, a epidemia
de desinformação, a agressividade dos regimes autocráticos e dos populistas
iliberais e, no Brasil, a disputa dos dois movimentos mais hostis à imprensa na
Nova República, o bolsonarismo e o lulopetismo, tornam mais relevante do que
nunca celebrar o Dia Mundial da Liberdade de Imprensa, neste 3 de maio.
De acordo com a Freedom House, uma
instituição de monitoramento da democracia, só 13% da população mundial goza de
uma imprensa livre. As autocracias movem uma ofensiva para provar que a
prosperidade pode ser conquistada sem ela.
A guerra deu a Vladimir Putin o pretexto
ideal para recrudescer o controle sobre a mídia russa, desativar redes sociais,
perseguir jornalistas e criminalizar dissidentes. O Partido Comunista Chinês
construiu o aparato de censura mais sofisticado do mundo e tem expandido sua
influência sobre veículos no exterior para promover sua propaganda e suprimir
críticas.
No Ocidente, a promessa das redes sociais
de ampliar o pluralismo e a liberdade de opinião fracassou: dominadas pelos
extremos à direita e à esquerda, milícias virtuais e agentes de desinformação
autocráticos, elas se parecem cada vez menos com um governo do povo e cada vez
mais com um governo dos truculentos.
O problema não são tanto as publicações
tóxicas, mas seu alcance e influência. A lógica de impulsionamento dos
algoritmos favorece o sensacionalismo e a agressividade. Há um consenso sobre a
urgência de regulações que reduzam a atuação dos robôs e trolls e restituam o
espaço à maioria silenciosa e exausta, mas há pouco consenso sobre quais devem
ser.
A polarização e a “infodemia” exacerbaram a
desconfiança em relação à imprensa explorada por líderes iliberais. Eles vêm
desenvolvendo um kit de ferramentas econômicas, legais e extralegais para
silenciar mídias independentes e anabolizar as correligionárias. Na Hungria o
controle está praticamente consolidado. Entre as táticas de intimidação do
ex-presidente americano Donald Trump estão ameaças de recrudescer leis de
difamação, revogar licenças de veículos de comunicação e prejudicar seus
negócios.
No Brasil, Lula da Silva suscita
recorrentemente a velha ambição de “controle social da mídia”, não tendo
pudores de invocar a propósito sua admiração por ditaduras como Cuba, Venezuela
ou China.
Dos princípios da administração pública, possivelmente
o mais brutalizado pelo presidente Jair Bolsonaro foi o da transparência. A
imprensa criou um consórcio para garantir informações confiáveis na pandemia, e
veio dela a denúncia de um orçamento secreto para distribuir verbas a
correligionários.
Pari passu com a difusão de notícias
falsas e discursos de ódio, insultos, estigmatização e humilhações públicas de
jornalistas são métodos empregados sistematicamente pelo bolsonarismo. A
Federação Nacional dos Jornalistas registrou um pico de ataques verbais e
físicos a profissionais de imprensa. Só em 2020 foram 428. Bolsonaro foi autor
de 175 agressões verbais. No mesmo ano, segundo a organização Artigo 19, ele
deu em média 4,3 declarações falsas ou enganosas por dia.
Como disse um dos fundadores da democracia
moderna, Thomas Jefferson, o experimento democrático se presta a provar que os
seres humanos podem ser governados pela razão e pela verdade. “Nosso primeiro
objetivo deveria ser, portanto, abrir a eles todas as avenidas para a verdade.
E a mais eficaz encontrada até agora é a liberdade de imprensa. Logo, ela é a
primeira a ser obliterada por aqueles que temem a investigação de suas ações.”
Mais de 200 anos depois, nunca essa obliteração atingiu níveis tão alarmantes.
Manifestações frustradas
O Estado de S. Paulo
Baixa adesão aos atos de Bolsonaro e de Lula no domingo indica que disputa presidencial permanece em aberto
As ruas mandaram um recado neste domingo,
1.º de maio. Na data em que se celebra o Dia do Trabalhador, as manifestações
convocadas por apoiadores do presidente Jair Bolsonaro e do ex-presidente Lula
da Silva tiveram, em comum, a baixa adesão. A cinco meses da eleição
presidencial, ficou evidente que a população preferiu permanecer em casa − ou
aproveitar o domingo de sol em parques, praças, clubes ou shopping centers.
Os dois pré-candidatos que lideram as
pesquisas de intenção de voto bem que tentaram mobilizar suas bases. E
compareceram pessoalmente: Bolsonaro em Brasília, em frente ao Congresso
Nacional, com direito à participação, por vídeo, em ato esvaziado na Avenida
Paulista; Lula diante do Estádio do Pacaembu, em São Paulo, onde precisou
esperar o show da cantora Daniela Mercury para atrair mais público.
Em tese, motivos não faltavam para um maior
comparecimento de militantes governistas e da oposição. Do lado do governo, em
sua permanente cruzada antidemocrática e a favor de um clima de golpismo, seria
mais um momento para bater bumbo em torno do perdão concedido por Bolsonaro ao
deputado federal Daniel Silveira (PTB-RJ). Nas hostes bolsonaristas, Silveira é
reverenciado como símbolo de defesa da liberdade, após ter sido condenado a 8
anos e 9 meses de prisão, pelo Supremo Tribunal Federal, por ameaçar ministros
da Corte e por instigar conflito entre o Judiciário e as Forças Armadas.
Do lado petista, por sua vez, o 1.º de Maio
é uma data historicamente celebrada pelas centrais sindicais. No momento em que
a liderança de Lula nas pesquisas eleitorais é confrontada pelo crescimento de
Bolsonaro, nada melhor do que demonstrar vigor e capacidade de mobilização.
Lula, no entanto, viu-se forçado a retardar seu discurso por falta de quórum.
Pior: abriu sua fala com um pedido de desculpas a policiais, depois de mais uma
gafe cometida na véspera − quando, a pretexto de atacar Bolsonaro, disse que o
presidente “não gosta de gente, gosta de policial”.
A baixa adesão às manifestações de domingo
provavelmente teve vários motivos. Um deles, o fato de que as eleições de
outubro ainda estão distantes. Não só no calendário, mas também no imaginário
da população, isto é, do ponto de vista do interesse imediato de quem precisa
lidar com as contingências do dia a dia. Ao contrário de cliques nas redes
sociais, sair às ruas requer outro grau de engajamento. E a decisão do voto,
daqui a cinco meses, permanece em aberto para muita gente.
Daí a percepção, corroborada por pesquisas, de que a disputa eleitoral deste ano tem espaço para candidaturas que sirvam de alternativa aos dois nomes até aqui apontados como favoritos. Sim, Lula e Bolsonaro lideram as intenções de voto, mas também comungam altas taxas de rejeição e tiram proveito do clima de polarização que se instalou no País. Até aí, nada de novo. Assim como não há novidade no fato de que é longa a lista de razões para que o eleitorado busque uma terceira via. Resta à classe política viabilizar o anseio de tão vasta parcela da população.
Bolsonaro semeia confusão sobre urna
eletrônica
O Globo
O presidente Jair Bolsonaro nunca teve pudor em atacar o sistema eleitoral. Na eleição de 2018, disse que teria vencido no primeiro turno não fossem fraudes cujas provas jamais apresentou. Agora, em campanha para se reeleger, volta a martelar mentiras contra a urna eletrônica, na certa preparando o terreno para, se derrotado, investir numa denúncia de irregularidade e criar crise político-institucional. Com essa intenção, tem usado sua influência sobre o representante das Forças Armadas na Comissão de Transparência das Eleições (CTE) do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), o general Heber Garcia Portella.
O militar cumpre o papel que a Justiça Eleitoral espera dele: avaliar a segurança da urna eletrônica. Na última resposta do TSE às sugestões dos integrantes da CTE, algumas observações suas foram acatadas, outras refutadas, como para os demais. Em vários casos, elas coincidiam com as de outros integrantes e são pertinentes para aperfeiçoar o sistema eleitoral no futuro. Em particular, na necessidade de ampliar a amostra dos testes das urnas para assegurar um nível razoável de confiança estatística e na de publicar na íntegra os códigos do sistema (algo que parece estar nos planos do TSE).
Sua movimentação nos bastidores, contudo,
ultrapassa o limite do razoável. De acordo com o colunista do GLOBO Pablo
Ortellado, uma de suas réplicas ao TSE, mantida em sigilo, tinha mais de 700
páginas de minúcias técnicas. Diálogos de Portella com técnicos do TSE, a que
teve acesso a jornalista Míriam Leitão, também colunista do GLOBO, corroboram o
viés palaciano na atuação de Portella. Na troca de mensagens, ele leva ao
limite hipóteses de falhas inverossímeis na contagem dos votos, de modo a poder
aventar a aplicação do artigo do Código Penal que prevê novas eleições
dependendo da quantidade de votos anulados.
A Justiça Eleitoral tem cumprido seu papel
ao ampliar o acesso ao sistema eleitoral e ao abrir-se a sugestões para que ele
se torne ainda mais confiável do que já é — jamais houve denúncia comprovada de
fraude desde a implantação do voto eletrônico. Ao lado do general Portella,
estão representantes do Tribunal de Contas da União (TCU), do Legislativo, da
Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), da Polícia Federal, da comunidade acadêmica,
de organizações da sociedade civil e especialistas em tecnologia. Já foram
divulgados relatórios com propostas da CTE comentadas por técnicos e um Plano
de Ação.
Bolsonaro, porém, mantém a intenção de
tumultuar. A mais recente pista ele deu ao se irritar quando o lançamento de
uma nova ferramenta do WhatsApp permitindo grupos com milhares de pessoas (hoje
eles estão limitados a 256) foi adiado no Brasil para depois das eleições.
Bolsonaristas atribuíram a responsabilidade pela medida a uma determinação da
Justiça Eleitoral. Representantes da plataforma tiveram de ir a Brasília
explicar ao presidente que o adiamento se deve a fatores comerciais. Depois ele
chegou a falar em usar os militares para promover uma estapafúrdia “apuração
paralela”.
A presença de representantes das Forças
Armadas na CTE não deve ser confundida com submissão das eleições a desígnios
militares. A Constituição é clara sobre a responsabilidade, os deveres e a
independência da Justiça Eleitoral. Qualquer tentativa de usar os militares
para impor ao TSE medidas sem cabimento, com o intuito de gerar confusão,
precisa ser repudiada.
É saudável para o país a mudança nos
rótulos de produtos processados
O Globo
É bem-vinda a mudança nas embalagens de
alimentos processados para informar ao consumidor sobre ingredientes que
prejudicam a dieta e respondem pelos altos índices de obesidade na população,
como sódio, açúcar e gorduras saturadas. A decisão de estampar essas
informações na parte frontal dos produtos foi aprovada pela Agência Nacional de
Vigilância Sanitária (Anvisa) em 2020, mas só deverá entrar em vigor em
outubro.
É sensata a preocupação com os índices de
obesidade no país. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), ela
aumenta o risco de várias doenças, onera os sistemas de saúde e se tornou um
dos cinco maiores riscos de mortalidade no mundo.
Como mostrou reportagem do GLOBO, dados do
Ministério da Saúde (apenas das capitais) mostram que, desde 2006, a cada ano
360 mil brasileiros com mais de 18 anos passaram a sofrer com o excesso de
peso. A maior parte se tornou obesa. Em 2021, 57% dos moradores das capitais
tinham sobrepeso. A julgar pelos números, não se trata de problema sazonal. Dos
16 anos em que é feita a pesquisa do ministério, em 13 foi constatado aumento
dos índices. Em apenas três eles ficaram estáveis.
A escolha não envolve apenas aspectos
nutricionais. Uma pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais mostrou que,
em 1995, alimentos saudáveis eram baratos: custavam em média 53% dos
processados. Em 2017, já atingiam 70%. A previsão era que os processados se
tornassem mais baratos somente em 2026. Com a aceleração da inflação e eventos
climáticos que prejudicam as safras, já se trabalha com a possibilidade de que
isso aconteça ainda neste ano.
Claro que a escolha entre comprar um
produto natural ou um processado sempre deve caber ao cidadão. Mas o Estado não
pode abrir mão de seu papel de promover políticas públicas que tornem essas
escolhas mais transparentes e contribuam para melhorar a saúde da população.
Não adianta a indústria alegar que as informações já estão na embalagem se só
podem ser lidas com lupa. O consumidor precisa saber o que leva para casa, de
modo a arcar com os riscos de suas decisões. “A rotulagem frontal de
advertência já é adotada noutros países, como Chile, Uruguai e México, com bons
resultados”, afirma Paula Johns, diretora-geral da ONG ACT-Promoção da Saúde.
“Poderia ser melhor, se tivéssemos adotado o modelo recomendado pela Organização
Pan-Americana de Saúde (Opas), mais rigoroso.”
A medida não encerra o assunto. A ingestão de alimentos industriais nas cantinas das escolas também deveria merecer atenção dos governos, pelo efeito nocivo na saúde das crianças. Não faltam projetos de lei para discipliná-la, incentivando a venda de alimentos naturais e desestimulando a oferta de processados nesses ambientes. Mas eles permanecem entalados no Legislativo graças à pressão da indústria alimentícia. A luta por uma alimentação saudável deveria ser tarefa de todos, especialmente de políticos sob escrutínio de seus eleitores.
Agenda rebaixada
Folha de S. Paulo
A Bolsonaro convém campanha centrada em
falsos problemas e bandeiras ideológicas
Houve algum alívio com a atitude
relativamente contida de Jair Bolsonaro (PL) em atos de modesta mobilização no
Dia do Trabalho. Trata-se de reação, nos meios políticos e em setores da
sociedade, que evidencia como o mandatário opera para rebaixar o debate
nacional à sua pauta tacanha.
Evitou-se o pior porque Bolsonaro, embora
tenha marcado
presença em duas manifestações de índole antidemocrática contra o
Supremo Tribunal Federal e a Justiça Eleitoral, não chegou a discursar contra
as instituições ou a fazer incitações abertamente golpistas.
Em Brasília, limitou-se a cumprimentar um
punhado de apoiadores que não chegava a cobrir toda a grama ressecada em frente
ao Congresso Nacional. Para mais movimentado protesto da avenida Paulista, em
São Paulo, mandou um vídeo de menos de dois minutos com bordões reacionários.
"Temos um governo que acredita em
Deus, respeita os seus militares, defende a família e deve lealdade ao seu
povo", disse na gravação —como se alguma força política hoje importunasse
os laços familiares, as Forças Armadas ou as convicções religiosas.
Qualquer presidente, até um desprovido de
ideias e argumentos, possui grande capacidade de ditar a agenda do país. Nos
últimos dias, Bolsonaro conseguiu atrair as atenções para o embate com o
Judiciário em torno de um deputado irrelevante —e ressuscitar a ofensiva contra
as urnas eletrônicas sem um fiapo de base factual.
Além de abrir caminho para uma tão
previsível quanto farsesca contestação a uma derrota eleitoral, convém ao
presidente uma campanha centrada em problemas imaginários e bandeiras
ideológicas.
Muito mais difícil, para um político que
foge de entrevistas e debates, será apresentar caminhos para superar a
dramática combinação de carestia, desemprego e desarranjo orçamentário vivida
pelo país e agravada pela guerra na Ucrânia —ou prestar contas sobre a trágica
gestão da pandemia.
Mesmo diante de sua base de apoio mais
fiel, é prudente evitar maiores explicações sobre os nebulosos gastos do
Ministério da Educação e da Codevasf, impulsionados pela intermediação de
pastores ou por pressões do centrão.
A piorar o quadro, interessa também ao
principal adversário na corrida ao Planalto, Luiz
Inácio Lula da Silva (PT), uma disputa mais plebiscitária do que
programática, na qual desponte como única alternativa ao desgoverno e aos
impulsos autoritários de Bolsonaro.
A apenas cinco meses da votação, muito
pouco se sabe sobre os propósitos e compromissos de parte a parte. Quanto mais
o pleito presidencial se resumir a um duelo de rejeições, mais perderá o
eleitor.
Meta no lixo
Folha de S. Paulo
No ritmo atual, país fracassará em objetivo
de regularizar descarte de resíduos
Em pleno ano de 2022, cerca de metade das
cidades brasileiras ainda faz o descarte do lixo em locais inapropriados, o que
dá a medida do fracasso do país nessa área.
Segundo dados da Abrelpe, associação que
reúne empresas do setor de coleta, nada menos que 2.868 municípios depositam
seus resíduos de forma inadequada, seja nos famigerados lixões, seja em aterros
sem nenhum preparo para impermeabilização do solo.
Embora a extinção desses espaços insalubres
conste da reduzida lista de promessas do governo Jair Bolsonaro (PL) na área
ambiental, o ritmo em que isso vem ocorrendo torna
pouco factível a meta de eliminá-los até 2024.
De 2018 a 2020, apenas 133 novas cidades
passaram a utilizar os aterros sanitários, que contam com proteção do solo,
captura do chorume e controle dos gases produzidos. Mantido esse ritmo, serão
necessárias mais quatro décadas para que os lixões desapareçam.
O progresso atual chega a ser mais lento do
que o verificado de 2017 a 2018, quando o número de municípios com destinação
inadequada de resíduos diminuiu de 3.352 para 3.001.
Baseado em números de uma entidade com a
qual tem parceria, a Abetre (não da Abrelpe, considerada referência no setor),
a gestão Bolsonaro alega que a redução vem se dando em ritmo mais célere.
Segundo o Ministério do Meio Ambiente, 645
desses depósitos foram encerrados desde 2019; faltariam ainda 2.612. Mesmo se a
métrica utilizada for essa, entretanto, a meta governamental não seria atingida
antes da próxima década.
Tudo somado, constata-se que têm sido
pífios os resultados do programa Lixão Zero, lançado em 2019 pelo então
ministro Ricardo Salles —que, ao priorizar a agenda ambiental voltada às
cidades, deixava em segundo plano o descalabro que se abatia sobre a Amazônia.
A inépcia demonstrada pelo governo
Bolsonaro, infelizmente, tem sido a norma no Brasil quando se trata do descarte
de detritos.
A Política Nacional de Resíduos Sólidos
instituída em 2010 determinava o fim dos lixões até 2014. Avançou-se pouco,
porém, e em 2020 o marco do saneamento estendeu esse prazo para 2024.
Mais uma vez, porém, tudo indica que esse limite será descumprido —e o país seguirá amargando, no ano em que completa o bicentenário da Independência, sua vergonhosa incapacidade de solucionar uma questão tão básica.
Auxílio Brasil mantém erros e passa a ser
permanente
Valor Econômico
Novo programa falha ao dispensar as
contrapartidas que exigiam manter a vacinação das crianças e a frequência
escolar
A Câmara dos Deputados aprovou na semana
passada a Medida Provisória (MP) 1.076/2021, que fixou em R$ 400 o valor do
Auxílio Brasil, substituto do Bolsa Família, e tornou o benefício permanente.
Apoiado por 418 deputados, com sete votos contrários, o texto segue agora para
análise do Senado. A votação da MP deve ser concluída até 16 de maio para que
não expire. Já tinha passado da hora de reajustar o Auxílio Brasil, cujo valor
médio é de R$ 224, especialmente no cenário de escalada da inflação dos últimos
meses. Em abril, o IPCA-15 saltou 1,73%, a maior elevação mensal desde 1995,
acumulando alta de 12,03% em 12 meses, puxado pelos combustíveis, mas também
transporte e alimentos.
A experiência com o Auxílio Emergencial
durante a pandemia mostrou a importância das políticas de transferência de
renda. O auxílio da pandemia só chegou a R$ 600 por pressão do Congresso. O
governo Bolsonaro queria a metade disso. De acordo com cálculos do pesquisador
da área de Economia Aplicada do FGV Ibre Daniel Duque, a partir de dados da
Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua e da Pnad Covid-19
do I IBGE, graças ao benefício, a pobreza diminuiu no país, mesmo com a
pandemia. Em 2019, 6,6% dos brasileiros estavam em extrema pobreza e 24% em
pobreza não extrema; em julho de 2020, essas taxas tinham caído para 2,4% e
20,3%. Com o fim do benefício, as taxas pioraram e 7% dos brasileiros estão em
extrema pobreza e 27% em pobreza não extrema.
No caso da MP do Auxílio Brasil, a oposição
novamente queria elevar o valor para os R$ 600, mas não conseguiu desta vez. Em
manobra com o presidente da Câmara dos Deputados, o governo barganhou trocar o
valor mais alto por um benefício permanente. Pela proposta original, ele
terminaria em dezembro deste ano, escancarando seus objetivos eleitoreiros.
O auxílio foi feito a toque de caixa para
atrair o eleitor, mas vem com vários defeitos. Um deles é ter sido usado pelo
governo como desculpa para furar o teto de gastos com a PEC dos Precatórios,
cujos objetivos eram, na realidade, levantar recursos para as emendas do
relator, aumentar o fundo eleitoral e realizar o prometido reajuste de
servidores.
O relator do projeto, deputado João Roma
(PL-BA), ex-ministro da Cidadania do governo Bolsonaro, é pré-candidato ao
governo da Bahia e tem usado o programa como vitrine eleitoral. Ele argumentou
que a PEC dos Precatórios autorizava a despesa. Estima-se que o programa
custará R$ 88 bilhões por ano para atender os atuais 18 milhões de
beneficiários. Existe 1 milhão de famílias pleiteando a inclusão no programa.
Erros igualmente graves estão na formulação
do programa. Desprezando o longo aprendizado dos especialistas na área, fixou o
valor de benefício em R$ 400 por família, sem levar em conta a quantidade de
componentes. Uma família com uma pessoa ganha o mesmo que uma com duas
crianças, por exemplo. O valor fixo também pode estimular a fragmentação das
famílias ou omissão de rendimentos, o que o torna ineficiente para reduzir a
desigualdade. “A maior parte dos benefícios sociais e trabalhistas tem valor
fixo, não variando de acordo com as características da família beneficiária,
como o Benefício de Prestação Continuada e o Abono Salarial. Esses programas já
deveriam ter sido reformados para se tornarem mais capazes de reduzir a
pobreza. Em vez disso, o auxílio reforça essa opção menos eficiente”,
escreveram os economistas Vinícius Botelho, Fernando Veloso e Marcos Mendes
(Estado, 7/2/22)
O cuidado com o cadastro dos beneficiários
é outro ponto fraco, que pode ter justificado os desvios ocorridos no pagamento
do auxílio emergencial durante a pandemia e influenciado na variação do número
de famílias que ficaram de fora do novo programa. Aperfeiçoamentos prometidos
do Bolsa Família não saíram do papel; não houve preocupação com focar as portas
de saída; e não há avaliação de resultados (O Globo, 2/5).
O novo programa também falha ao dispensar
as contrapartidas estabelecidas pelo Bolsa Família, que exigia manter a
vacinação das crianças e as visitas médicas em dia e a frequência escolar. Mas
isso parece demais para um governo que combate as vacinas e defende o
homeschooling e esquece que acesso à educação e serviços de saúde são caminhos
para a redução da pobreza e da desigualdade, ao lado da oferta de empregos e de
estabilidade econômica.
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