Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
Sob a égide de Bolsonaro, ele está se
transformando num inimigo feroz da igualdade num país marcado por múltiplas
assimetrias desde a escravidão
O Estado deve servir para impulsionar e
proteger a cidadania. Essa máxima política foi construída ao longo de séculos
na Europa e nos Estados Unidos e só muito recentemente foi incorporada à lógica
política brasileira, a partir de 1988 com a chamada (não por acaso)
Constituição cidadã. Nos últimos 30 anos essa ideia evoluiu no Brasil e, mesmo
com percalços e lacunas, foi a principal bússola do debate público. E aqui
entra mais um ineditismo negativo do governo Bolsonaro: sua visão sobre o papel
do Estado o torna inimigo da cidadania democrática.
O conceito de cidadão supõe a busca da
igualdade como norteadora de todas as dimensões públicas da vida social. É
preciso garantir direitos básicos a todos e criar condições para que cada um
possa usufruir o máximo possível de sua cidadania. Trata-se de uma ideia com
múltiplos pais: republicanos, liberais, democratas, socialistas,
social-democratas e ecologistas. Há consensos e nuances nas visões desses
grupos, mas todos concordam que a reprodução cotidiana da desigualdade na
esfera pública é um mal a ser combatido.
O bolsonarismo é inimigo da ideia de
igualdade cidadã. Sua proposta é de manter a desigualdade prévia de cada um, a
partir da qual, ilusoriamente, se poderia exercer uma liberdade quase
irrestrita, com exceção dos limites impostos pelo exercício do poder do líder
maior, o mito - isto é, o presidente da República.
Na via inversa, o igualitarismo democrático é uma construção contínua de direitos e capacidades, o que exige uma ação efetiva do Estado e, concomitantemente, o seu controle. Bolsonaro propõe exatamente o contrário: que o governo seja frágil nas políticas que criam oportunidades e a possibilidade do exercício da cidadania, ao passo que o aparato estatal deve ser forte na garantia das desigualdades prévias e no exercício do poder repressivo, tornando-o incontrolável pela sociedade.
Vários acontecimentos recentes, derivados
de ações bolsonaristas ou impulsionadas por seu ideário difundido nos últimos
anos, mostraram como o Estado, sob a égide de Bolsonaro, está se transformando
num inimigo feroz da igualdade num país marcado por múltiplas assimetrias desde
a escravidão. Pode-se dividir tais episódios em três elementos estratégicos do
papel do Estado frente à cidadania.
O primeiro é sua capacidade de usar os
direitos para expandir capacidades de indivíduos e comunidades. O segundo é sua
função de garantir a segurança e a liberdade de todos, indiscriminadamente,
para que os cidadãos não sejam atingidos nem pela guerra de todos contra todos
- a anomia social - e tampouco pelo poder desmesurado das forças estatais. Por
fim, Estado democrático é aquele que contém instrumentos de controle sobre si,
sejam externos, advindos da sociedade, sejam internos, advindos das
instituições.
O igualitarismo não é uma obra pronta em
nenhum país do mundo. Em todos, é preciso que haja direitos e que estes sejam
alimentados por políticas públicas capazes de criar capacidades para exercer a
autonomia individual e a vida comunitária.
Quando o governo Bolsonaro aprova na Câmara
federal uma lei muito ampla de homeschooling, que se torna uma possibilidade
para todos, e não uma situação muito excepcional para aqueles que teriam
dificuldades de saúde ou de locomoção para usufruírem de um ano escolar
regular, o que está sendo feito é reduzir a efetividade do Estado em construir
oportunidades para os mais pobres e vulneráveis. Ou seja, para a grande maioria
dos 48 milhões de estudantes da educação básica, os mesmos que o MEC
bolsonarista abandonou na pandemia de covid-19.
O projeto de homeschooling bolsonarista,
para além dos moralismos hipócritas que o sustentam, tem como principal
consequência a perpetuação das desigualdades no Brasil. Quantos mais alunos
pobres puderem fazer educação domiciliar, e certamente serão incentivados pelos
bolsonaristas e algumas lideranças evangélicas que vão enriquecer vendendo
sistemas de ensino feitos por semialfabetizados, mais terão reduzidas suas
possibilidades de ascensão social.
Mais do que isso: ao não criar as condições
para que todos possam ter escolas públicas de qualidade, que poderiam ser
substituídas por um simulacro de ensino, Bolsonaro não só se vinga da ciência e
dos que pensam autonomamente, como também embarga a chance daqueles que não têm
acesso ao saber e ideias diferentes de mundo. Assim, o homeschooling causará um
duplo empobrecimento: da renda futura dessas pessoas e do universo cultural ao
qual terão acesso.
Cabe recordar que, para os gregos, a
cidadania era uma forma de ampliar a capacidade de cada um e da comunidade
sonharem. O bolsonarismo quer alimentar a ignorância para que todos se acomodem
no status quo vigente, em suas misérias cotidianas, à espera de um salvador
secular ou religioso, sem romper com as diferenças sociais históricas que
determinam, no fundo, como o Estado pode abordar pessoas na favela ou no
Leblon.
Se o governo Bolsonaro quisesse ampliar as
capacidades de todos serem cidadãos, teria priorizado a educação, cujo
ministério teve um recorde de ministros e que prefere servir ao clientelismo do
orçamento secreto. Mais especificamente, se o bolsonarismo quisesse ter um modelo
educacional para mudar a situação das pessoas mais pobres e de seus
descendentes, estaria investindo em massa em políticas de primeira infância. A
literatura internacional está repleta de evidências científicas
interdisciplinares de que programas públicos de apoio e intervenção
intersetorial junto aos bebês e crianças até os seis anos de idade constituem o
motor mais potente de mudança social.
O presidente deveria pegar os R$ 35 bilhões
das emendas parlamentares, ou pelo menos os quase R$ 20 bilhões do dinheiro
federal que hoje compram de forma secreta tratores e caminhões de lixo para
investir no futuro do país. Vale ressaltar que as políticas de primeira
infância são feitas em diálogo e parceria com as famílias, mas dependem de uma
intervenção constante do Estado em todos os momentos do desenvolvimento da
criança - aliás, começando já na gravidez da mãe. Não será trancando as
famílias em suas próprias casas, assombradas por líderes demagógicos, que os
pobres verão seus filhos numa situação melhor no futuro.
O problema para o bolsonarismo é que
desenvolver políticas públicas complexas significa investir em especialistas e
servidores públicos que se movem pela ciência e pelo longo prazo. Não é por
outra razão que Bolsonaro politizou gigantescamente a administração pública
federal, enchendo-a de grupos que o obedecem fielmente, como milhares de
apaniguados incompetentes, além de militares ocupando postos civis para os
quais não têm preparação.
Para usar o Estado no desenvolvimento da
cidadania, ele tem de ser o oposto do que quer o atual presidente: competente,
autônomo frente a desmandos e controlável pela sociedade.
O modelo estatal bolsonarista tem uma
segunda frente contra a cidadania: ele não busca garantir os direitos iguais
dos cidadãos em relação à lei e sua aplicação pelas forças de segurança. O caso
de Genivaldo Santos, torturado e morto na semana passada pela Polícia
Rodoviária Federal em Sergipe, revela o modelo estatal que Bolsonaro defende.
A vítima foi tratada como culpado desde o
início, não lhe sobrando nenhum momento de defesa da sua condição de cidadão.
Sua posição social explica a postura dos policiais: negro, pobre e com
problemas de saúde mental, Genivaldo seria, para o bolsonarismo, um desigual
por natureza e assim deverá ser tratado pelo aparato estatal, assim como
indígenas, moradores de rua, pretos, travestis e todos os que não se encaixam
no perfil do “homem de bem” bolsonarista.
No fundo, Bolsonaro defende um Leviatã às
avessas. O Estado representado pelo monstro com vários braços proposto por
Thomas Hobbes tinha como objetivo resguardar a vida e a segurança de todos, sem
exceção. Isso seria feito por contrato com participação integral da sociedade,
que só aceitava repassar tanto poder à soberania estatal porque ela seria justa
e equânime. O bolsonarismo quer ter o monstro com seu poder bélico em suas
mãos, mas para enfraquecer a ideia de igualdade, e não para garanti-la.
O último elemento da cidadania democrática
refutado pelo bolsonarismo é a ideia de accountability, isto é, de controle
público. Para que haja uma sociedade com cidadãos autônomos e respeitados, é
preciso, a um só tempo, ampliar e demarcar bem o poder estatal. É trágico como
Bolsonaro não quer ampliar o Estado para construir oportunidades e capacidades
a todos, mas quer um aparato estatal autocrático e sem fiscalização, quer seja
da sociedade, quer seja das instituições. Quando o atual presidente busca
enfraquecer o STF ou a Federação, ele se torna um autocrata inimigo da
cidadania.
O sonho bolsonarista é duplo. De um lado,
uma desresponsabilização do Estado com os mais pobres e sua desregulamentação
frente a garimpeiros ilegais, milicianos e motoristas brancos da classe média
para cima que andam em suas motos sem capacetes. De outro, o Estado forte será
destinado à repressão dos eternos condenados à desigualdade, como também poderá
ser usado para ameaçar as instituições que tentam limitar o poder presidencial.
Bolsonaro quer se reeleger para que a cidadania inventada pela Constituição de
1988 tenha sua morte decretada no Brasil.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas.
Um comentário:
Muitos crentes vão preferir ''instruir'' suas crianças em casa.
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