Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
A incômoda deterioração urbana de cidades
como São Paulo decorre de que a própria cidade já não é para ser usada no marco
da civilidade, mas para ser consumida
Estudo recente do epidemiologista Jesem
Orellana, da Fiocruz Amazônia, e do psiquiatra Maximiliano Ponta, da Fiocruz
Ceará, sobre ocorrências de suicídios, em 2020, no Norte e no Nordeste, indicou
excesso de suicídios como efeito indireto da pandemia de covid-19. Excesso em
relação aos números normais dessa ocorrência no Brasil.
A taxa de suicídios já vinha crescendo em
níveis preocupantes: 2,7% na década de 1980; 33,3% no período de 2000 a 2012.
Pesquisadores correlacionam possíveis causas dessa anomalia. Aqui também
suicídio é considerado doença, decorrente de determinados atributos, como
idade, sexo, raça e situação social. Na verdade, indicam mais que isso, as
situações de anomia, de supressão de normas e valores que dão sentido à
continuidade da vida.
Relações de causa e efeito na realidade social não são relações propriamente mecânicas, mas relações construídas a partir de causas e fatores explicáveis pelos próprios agentes das ocorrências. Mesmo no suicídio, cuja explicação científica depende do conhecimento dos motivos do suicida.
Se alargarmos a análise para as mediações
sociais, culturais e históricas que se expressam insuficientemente nesses
indicadores, veremos que a sociedade que neles se manifesta, como a do
neoliberalismo econômico, coisifica o ser humano ao reduzi-lo a equivalente de
mercadoria, válido unicamente se for lucrativo e consumidor. Não é casual que
suicídios ocorram mais entre jovens e velhos. A anomia indica desvalorização do
que é caracteristicamente humano. Ignora a irracionalidade social que há na
ilimitada racionalização econômica.
A sociedade pós-moderna em que sobrevivemos
é a do homem que já não tem desafios. É a do cotidiano da dúvida do “para que
viver?”. Não é por acaso que os suicídios cresçam mais nas sociedades
prósperas. No Brasil, em regiões de prosperidade mais ou menos recente,
transicionais.
A improvisação criativa, que camponeses e
artesãos sobreviventes da sociedade tradicional conhecem tão bem, vai sendo
reinterpretada como defeito e insuficiência de formação e suas pessoas, como
obsoletas.
A emergência de atitudes novas, como a do
suicídio assistido, está vinculada a situações individuais ou sociais de
incerteza, medo, insegurança e inutilidade, como as de transição social. Nelas,
o suicídio expressa uma consciência solitária de exclusão social.
O que era a sociedade dos usuários torna-se
sociedade dos consumidores. O usuário tem o arbítrio do uso. A incerteza não é
dele, é da coisa que pode ou não usar. Já o consumidor é o sujeito passivo do
objeto de referência do cálculo e da taxa de lucro.
A incômoda deterioração urbana de cidades
como São Paulo decorre de que a própria cidade já não é para ser usada no marco
da civilidade, mas para ser consumida. A anômala política que se instalou no
poder em 2019 reduziu o Brasil a um país a ser consumido no lugar de um país a
ser vivenciado. Um problema, e não uma solução.
São componentes de situações de crise do
modo de ser que se traduzem em rupturas no modo de conceber, de interpretar a
vida e no modo de vida.
O suicídio depende de uma decisão quanto a
permanecer e quanto a partir. Nos casos que conheço, percebeu-se depois,
evidências de um amadurecimento da decisão por parte do suicida.
Cartas de suicidas costumam explicar a
decisão de abreviar a vida, seja para justificá-la, seja para acusar quem
supostamente ou o que supostamente é responsável pelo ato. É esse um atestado
do maior interesse sociológico de que, de vários modos, esse tipo de morte não
é uma ruptura repentina.
Mesmo que não deixe mensagens, quem se mata
deixa um rastro de sinais e de evidências dos motivos e causas da decisão por
meio dos quais continuam interrogando e questionando os que ficam. Suicídios
não se explicam, pois, simplesmente por um conjunto de indicadores e variáveis.
A vida pulsa na morte, no inexplicável de que alguém tire de si mesmo o que não
é seu.
Diferente do que vem sendo a usurpação da
morte pela sociedade de consumo, o velório programado, tudo reduzido à economia
de tempo, à mera formalidade sem solidariedade, os presentes meros
espectadores, presentes mas ausentes, nas sociedades tradicionais ainda há uma
sociabilidade da morte.
Nas sociedades tradicionais, a morte, o
súbito, não se separa do morrer, o socialmente lento da espera e da esperança.
A cultura do morrer tem a função de impedir que a sociedade morra com quem
morre, impedir que descontinue no que é de fato uma cessação da continuidade
social.
Essa cultura é inviabilizada nos casos de
suicídio, que é uma forma de ruptura social drástica, desprovida de esquemas
culturais preparatórios de preenchimento ritual do vazio pela morte causado.
José de Souza Martins foi
professor titular de sociologia na Faculdade de Filosofia da USP. Professor da
Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall
(1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras.
Entre outros livros, é autor de "Sociologia do desconhecimento - Ensaios
sobre a incerteza do instante" (Editora Unesp, 2021).
Um comentário:
Viver é difícil demais,se a pessoa não for forte se mata mesmo,eu entendo muito bem.
Postar um comentário