sexta-feira, 10 de junho de 2022

Maria Cristina Fernandes*: O oratório destelhado de Paulo Guedes

Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

Diálogos do ministro, reproduzidos em “Sem máscara - o governo Bolsonaro e a aposta pelo caos”, mostram como ele renova a ilusão de que seu mérito não está no que faz, mas no que não deixa fazer

 “Minha mãe mandou esta carta para o senhor. Ela é sua fã e vê seu sofrimento. Mandou esta carta desejando ao senhor muito boa sorte e orações.” O destinatário a devolveu: “Diz o seguinte para ela: com o filho que ela arrumou para mim, não tem oração que dê jeito. Eu tô fud... mesmo. Pode devolver isso para ela”. O filho da piedosa genitora se dirigia à porta quando foi chamado. “Vem cá, me dá a carta. Diz a ela que vou botar no meu oratório que minha mulher fez lá em casa. Desculpa eu ter falado isso pra você. É que tô muito aborrecido com sua saída, mas você tem um nome a zelar. Eu não tenho, né? Só você que tem.”

O emissário da carta é o ex-secretário do Tesouro Bruno Funchal. E seu destinatário é o ministro da Economia, Paulo Guedes. A conversa, segundo o jornalista Guilherme Amado, se deu depois que o ministro e seu ex-secretário foram apresentados às claraboias no teto de gasto sugeridas pelo Palácio do Planalto: o cálculo passaria a levar em conta a inflação de janeiro a dezembro, e não mais de julho a junho, e o pagamento dos precatórios seria parcelado a perder de vista. Funchal não aceitou participar da farsa e pediu o boné. As orações de sua mãe não aliviaram a barra de Guedes, mas o filho acabaria como CEO do Bradesco Asset Management.

A história está contada em “Sem máscara - o governo Bolsonaro e a aposta pelo caos” (Companhia das Letras, 2022), livro em que Amado, colunista do Metrópoles, faz o balanço do governo Jair Bolsonaro. A fonte é um dos 47 entrevistados de quem o jornalista tomou depoimento com o compromisso de que não os identificaria. De todos os diálogos colhidos, este, talvez, seja aquele em que mais se reconheça o protagonista, tão reiterado é o comportamento de Guedes com colaboradores, subordinados e jornalistas.

Como o personagem faz, ao vivo e em cores, declarações muito mais estapafúrdias, como a de que a primeira-dama francesa, Brigitte Macron, “é feia” ou que tem “empregada doméstica indo para Disneylândia”, a grosseria arrependida dos bastidores acaba por humanizá-lo, já que a missão que enfrenta é de sacrifício. Pelo menos é o que deixa claro a seleção dos relatos feita para o livro. Vide o episódio em que, ante uma chuva torrencial que fechou os acessos de São Conrado à zona sul do Rio, o ministro teria decidido descer do carro e pegar o metrô para chegar ao seu apartamento no Leblon. “As pessoas tiraram foto, abraçaram, me agradeceram, uma coisa linda”, teria dito. Nesses momentos, diz Amado, entendia Cristo, perseguido a despeito de tentar ajudar a humanidade.

Nem todas as fontes dos diálogos estão “off the records”. É caso do ex-presidente da Câmara e hoje secretário de projetos e ações estratégicas do governo de São Paulo, Rodrigo Maia, num relato fiel do decantado ciúme nutrido por Guedes em relação a economistas badalados na imprensa. A birra, que se notabilizou com os economistas do Plano Real, se estendeu aos mais jovens, como o ex-secretário de Política Econômica, hoje presidente do Insper, Marcos Lisboa. À época da reforma da Previdência, Maia contou como Guedes se arvorava a lhe dar ordens, solenemente ignoradas: “Você está proibido de falar com Marcos Lisboa”.

Guedes, segundo o relato do jornalista, soube, pela imprensa, do escolhido para o lugar de Roberto Castello Branco, por ele indicado para ser o primeiro presidente da Petrobras do governo Bolsonaro. Castello Branco, que, em março deste ano, assumiria o comando de uma empresa que comprou campos da Petrobras durante seu mandato (3R Petroleum), foi a primeira vítima da pressão pelo controle de preços.

São três os relatos compilados das tentativas de Guedes de demover Bolsonaro e seus militares da nomeação do então diretor de Itaipu, o general Joaquim Silva e Luna, ex-ministro da Defesa do governo Michel Temer. Os dois primeiros com o chefe: “Tem um negócio, presidente, chamado especialidade. O cara tem que ser especialista. Botar militar na Petrobras é mesma coisa que mandar um dentista pra guerra pra chefiar um Exército. Não vai dar certo”. Na segunda tentativa, aludiu ao controle militar da PDVSA: “Existe o risco de os militares, desempenhando tantas funções que não são deles, se deixarem corromper, como aconteceu na Venezuela”.

Não se sabe o que ouviu de volta. Mas deve tê-lo levado a insistir, desta vez, um degrau abaixo. Em conversa com “generais”, disse: “O Geisel e o Figueiredo foram um desastre. Vocês saíram pela porta dos fundos, sabe por quê? Vocês não acreditaram na sociedade aberta. Vocês querem um Brasil forte? Uma grande economia de mercado? São os americanos, com Forças Armadas fortes. Quem vocês acham que está mais defendido? Quem tem a Petrobras, a Eletrobras, a Cinebras, ou quem tem o segundo maior exército das Américas?”.

Guedes perdeu a parada. Não apenas com Silva e Luna, que permaneceu no cargo por quase um ano, como com aquele que viria a sucedê-lo, José Mauro Coelho. Ex-secretário de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis do Ministério de Minas e Energia, Coelho chegou ao cargo pelas mãos do ex-ministro do MME Bento Albuquerque, almirante da reserva. Apesar de civil, sua indicação foi vista como um reforço da Marinha vis-à-vis os interesses desde sempre defendidos por Guedes na estatal.

Coelho não esquentará a cadeira. A guerra da Ucrânia fez explodir a cotação internacional do petróleo e, principalmente, do diesel, levando a nova escalada das pressões. Foi a oportunidade para Guedes retomar a ofensiva com a indicação de Caio Paes de Andrade, um ex-presidente do Serpro que ocupava a secretaria de desburocratização do Ministério da Economia.

O ministro já havia tentado emplacá-lo quando Bolsonaro resolveu tirar Silva e Luna. Foi atropelado pela dupla Adriano Pires e Rodolfo Landim, que arregimentou apoio tanto do Centrão quanto do MME. Os conflitos de interesse da dupla vieram à superfície. A desistência abriu espaço para Coelho.

A retomada da Petrobras é a principal aposta de Guedes, não apenas para ficar no governo num eventual segundo mandato de Bolsonaro, mas para marcar algum tento numa gestão marcada pelo baixo desempenho da economia. O Fundo Monetário Internacional contrariou a previsão de Guedes de que o Brasil, que cresceu 0,5% no biênio 2020-2021, e mais oito países estariam com o PIB superior àquele que antecedeu a pandemia.

Na verdade, há 35 economias nesta situação, sendo 31 com resultado superior ao brasileiro. No biênio da pandemia, a economia global cresceu 2,6% e os emergentes, 4,4%. Com um crescimento de 0,5%, o Brasil só tem um desempenho benéfico se comparado com a América Latina e o Caribe, onde a economia encolheu 0,6%.

Nenhum dado é mais crítico para Guedes, no entanto, do que a alta da inflação, que bateu 12% nos últimos 12 meses e corrobora para a impopularidade do presidente. Tudo que o governo joga na renda dos mais pobres, a inflação toma.

O calendário corre contra Guedes. A decisão do conselho de administração da Petrobras de postergar a assembleia de acionistas para julho retardou a troca no comando da estatal e a execução dos planos do ministro. Até emissários da Cosan, empresa para a qual Coelho havia sido sondado antes de aceitar o convite de Bento Albuquerque para a Petrobras, foram mobilizados para reiterar o convite, sem sucesso. Até a assembleia de acionistas a estratégia da empresa é se defender das pressões pelo congelamento do combustível com alertas sobre o desabastecimento, que, se hoje está pressionado pelos embargos contra a Rússia, ficaria numa situação ainda mais crítica com uma trava nos preços.

Para pressionar conselho e assembleia sobre o controle de preços, a Economia corre com os planos de privatização. Aprovou no Conselho do Programa de Parceria de Investimentos (CPPI) a recomendação de um decreto presidencial que permita o início de estudos sobre a privatização. É um primeiro passo que ainda está longe de significar a inclusão da estatal no Plano Nacional de Desestatização, etapa que depende de chancela do Congresso.

E é justamente de lá que partem as maiores pressões contra Guedes. O ministro é o último obstáculo para o Centrão estender, ao Executivo, o mesmo domínio que exerce sobre o Legislativo. O novo pacote para a redução do ICMS apresentado pelo governo ao Congresso avança sobre a receita de dividendos da União auferidos do lucro da Petrobras, à revelia do ministro.

No início da semana, Bolsonaro alimentou as especulações de que Guedes possa vir a ser substituído. Disse que o ministro “de vez em quando” se mostra “cansado” e cobrou dele solução para os combustíveis. Revelou que recebe pressões para trocá-lo, mas que, apesar de tudo, confia na “lealdade mútua para mudar algumas coisas e prosseguir nessa linha”. E jogou um aperitivo para o Centrão ao dizer que desmembraria a Indústria e Comércio da pasta de Guedes.

Bolsonaro acaba por reforçar outro dos mantras ilusionistas do ministro, cujo sucesso pode ser medido pelo número de executivos de grandes bancos e empresas que o repetem: seu mérito não está no que faz, mas no que não deixa ser feito. E é alimentando esta ilusão que o ministro renova o passaporte da nação bolsonarista, desafiando aqueles que duvidavam de sua coabitação com as pedaladas da reeleição presidencial.

Noutro dos longos diálogos de Guedes, segundo o resgate de Guilherme Amado, o ministro estoura com o ex-governador João Doria, que, no início da pandemia, ligou para convencer o amigo a deixar o governo. Aconselhou-o a pensar na sua biografia. “Biografia é o ca..., tô ca... para a minha biografia”. Manteve o hábito de dizer e se desdizer em questões de segundos: “Quero o julgamento da história, João. Não quero o julgamento de paixões contemporâneas. Para falar a verdade, não estou nem preocupado com isso, estou preocupado em sair dessa m...”. Como, de resto, 212 milhões de brasileiros.

Um comentário:

ADEMAR AMANCIO disse...

Guedes é muito parecido com Bolsonaro,senão não estaria no governo até hoje,ou melhor,nem teria entrado.