O Globo
A história da saída de Pedro Guimarães do
governo, concretizada com uma carta de demissão lamuriosa, fornece um bom
símbolo da gestão Bolsonaro. E não só porque todo mundo que interessava em
Brasília sabia das denúncias de assédio sexual e moral contra o presidente da
Caixa e, mesmo assim, ninguém fez nada.
Nas 24 horas entre a divulgação das
denúncias e a saída de Guimarães, deu-se um jogo de pressão. De um lado, o
Centrão aflito com o estrago político, tentando fazer o presidente da República
demitir o subordinado o mais rápido possível e se posicionar de forma enfática
contra qualquer tipo de assédio, em solidariedade às vítimas.
De outro, o próprio Guimarães e a ala
ideológica lutando para que ele fosse mantido, uma vez que se diz inocente e
atribui as denúncias a intrigas e armações de inimigos.
Ao final, venceu a política. Mas a demora
em chegar a esse desfecho autoriza desconfiar que, não estivéssemos às vésperas
de uma eleição em que Bolsonaro precisa reduzir sua rejeição entre as mulheres
a todo custo, muito provavelmente Guimarães continuaria no cargo, apesar dos
relatos aterradores que surgiram nos últimos dois dias sobre o que se passava
no banco.
Foi o próprio Pedrão, como Bolsonaro o chama, quem escreveu: “Não posso prejudicar a instituição ou o governo sendo um alvo para o rancor político em um ano eleitoral”.
Ao longo do dia, enquanto se esperava a
demissão anunciada desde a noite anterior, quem procurava saber dos aliados de
Bolsonaro a razão da demora ouvia menções ao desconforto do presidente em rifar
um de seus mais fiéis auxiliares.
O executivo, que o presidente considera
brilhante, sempre o defendeu de tudo e de todos. Além do mais, Guimarães não
foi limado em razão de alguma falcatrua ou por ter se mancomunado com
“comunistas”, e sim por causa de denúncias de um grupo de mulheres.
Cinco mulheres atrevidas que se acharam no
direito de procurar o Ministério Público para contar que o Pedrão da Caixa se
aproveitou de seu status de autoridade para apalpar suas bundas, exigir abraços
fortes em ambientes de trabalho, convidar funcionárias para entrar em seu
quarto vestindo cueca samba-canção e mandar auxiliares perguntar às
subordinadas o que elas diriam se o chefe quisesse transar com elas.
A se confirmarem as denúncias, estarão
configurados crimes de assédio e importunação sexual, para os quais estão
previstas penas de prisão e multa. Mas deve ser difícil mesmo para Bolsonaro
entender a gravidade disso tudo.
Estamos falando de um presidente que não
viu problema em fazer insinuações de cunho sexual contra a jornalista Patrícia
Campos Mello, da Folha de S. Paulo, autora de reportagens que revelaram um
esquema de contratação de disparos em massa por sua campanha nas eleições de
2018.
"Ela queria dar o furo", disse
Bolsonaro em fevereiro de 2020, entre risos de seguidores. "(dar o furo) A
qualquer preço contra mim".
Por causa dessa fala, Patrícia sofreu uma
onda de ataques e ameaças de apoiadores de Bolsonaro, que justamente ontem foi
condenado a indenizá-la em R$ 35 mil. Seu filho Eduardo, deputado federal, e o
deputado estadual André Fernandes (PL-CE) também já foram condenados a pagar a
Patrícia R$ 85 mil ao todo, pelo mesmo tipo de afirmação.
Trata-se do mesmo Bolsonaro que só pediu
desculpas à petista Maria do Rosário por uma fala sexista — “eu não te
estuprava porque você não merece” —depois de ter sido condenado pela Justiça.
Por esse caso, até hoje o presidente responde perante o Supremo a duas outras
ações por injúria e incitação ao crime de estupro.
É o mesmo governo, ainda, que editou um
manual recomendando a profissionais de saúde dizer às mulheres que buscam o
direito de fazer um aborto legal — autorizado quando a gravidez decorre de
estupro, representa risco de morte para a gestante ou o feto é anencéfalo — que
“todo aborto é um crime”.
O que este episódio simboliza, portanto,
não é que a gestão de Bolsonaro não entenda do que precisam as mulheres – e
tampouco queira descobrir. Disso, já sabíamos. O caso Guimarães veio demonstrar
que há forças na sociedade brasileira para resistir a quem insiste em empurrar
o país para o atraso.
Força que vem de milhões de mulheres que trabalham e frequentemente sustentam famílias inteiras sozinhas. Que sabem o que é ser apalpada no trem ou no ônibus lotado e enfrentar cotidianamente o desrespeito masculino. E que já entenderam que muitas vezes não há opção a não ser falar bem alto se quisermos ser ouvidas. O voto? O voto é só uma consequência.
2 comentários:
Mexeu com uma,mexeu com todas...
Obrigada pelo texto. Muito mesmo.
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