segunda-feira, 20 de junho de 2022

Marcus André Melo*: O significado histórico das eleições francesas

Folha de S. Paulo

Há duas explicações rivais para a transformação das estruturas partidárias tradicionais

Após a debacle na eleição de 2017, o partido socialista (PS) francês, um dos mais importantes partidos europeus do pós-guerra, vendeu as "joias da coroa". Explico: o PS vendeu sua sede histórica na Rue Solférino, numa das áreas mais valorizadas de Paris, para pagar as dívidas de campanha.

Nada poderia ser mais simbólico. O sistema partidário estabelecido há quase um século no país exauriu-se. A eleição contrapôs Macron, e seu recém fundado movimento En Marche, à Marine Le Pen, o que se repetiu em 2022.

O PS obteve 1.8% do voto. No "terceiro turno" —as eleições legislativas desta semana— Mélenchon unificou a esquerda numa reviravolta ideológica de 180 graus. Se bem-sucedido, teria levado Macron a de fato lhe passar o bastão do executivo, conforme a prática do semi-presidencialismo no país. Nela, presidentes governam no modo presidencialista quando contam com maioria parlamentar; e submetem-se ao primeiro-ministro, em coabitação, na ausência dela.

Macron, Mélenchon e Le Pen são, em graus distintos, outsiders: insurgiram-se contra as estruturas partidárias tradicionais. Mas a ascensão de Macron mostra que nem todos os outsiders são extremistas. Os partidos de centro-direita tiveram a mesma sorte que o PS: os gaullistas e seus satélites também encolheram.

Há duas explicações rivais para esta transformação. A primeira foca em mudanças pelo lado da demanda: as preferências do eleitorado nas democracias avançadas mudaram, e se radicalizaram, sobretudo à direita, dando margem ao surgimento de partidos-nicho (verdes, feministas, etc) e anti-sistema. (No pós-guerra estes últimos eram graúdos e estavam na esquerda, como os estalinistas PCI e PCF, que definharam).

A segunda enfatiza a oferta institucional: os partidos distanciaram-se do eleitor médio. Voltaram-se para a governabilidade, tornando-se indistinguíveis uns dos outros. Resultado: afiliação partidária e comparecimento às urnas despencaram.

No final dos anos 1960, a política consensual sofre grande transformação. Nos anos 1980, as divergências programáticas acentuaram-se. Nas últimas décadas, a polarização recrudesceu, ao tempo em que sua natureza mudou; ela tornou-se fundamentalmente afetiva –ancorada na animosidade e rejeição entre rivais.

Muitos analistas, no pós-guerra, constataram a grande convergência programática entre partidos social-democratas, socialistas, democratas cristãos e conservadores. E lamentaram o cinismo cívico resultante. Afinal, a política parecia crescentemente uma farsa entre falsos rivais.

Hoje, eles lamentam que a política está marcada por divergências paralisantes. Antes teria havido ausência de polarização, hoje excesso dela.

*Professor da Universidade Federal de Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA).

Um comentário:

ADEMAR AMANCIO disse...

É como no Brasil,a polarização entre esquerda e direita exacerbou.