Valor Econômico
A economia foi penhorada. O Congresso
Nacional é seu agente de custódia, e é um terrível custodiante
Vejo a economia como um trem. A locomotiva,
com os trilhos e vagões, representa o PIB. O parlamento, hipoteticamente,
define as regras ou limites de funcionamento da malha ferroviária. Nessas
regras estão a Constituição Federal (CF) e as leis, que retratam o ambiente
institucional. O governo, observados os limites, é o maquinista ou condutor do
trem. Mas ele também propõe reformas, para que os trens não fiquem
incompatíveis com os trilhos.
Os vagões são divididos em classes: a 1ª para os ricos, a 2ª para a classe média e a 3ª para os pobres. Aumentar o número de vagões da 3ª classe, porque surgiram mais pobres, é medida paliativa, determinada pela concentração da renda. Mas deixar os pobres fora do trem significa o aumento da miséria. No outro extremo, criar condições para as pessoas migrarem da 3ª para a 2ª ou 1ª classe implica crescimento do PIB com distribuição de renda. É o que se espera de nações com instituições fortes. Porém ampliar o número de locomotivas e vagões, com o concomitante aumento da ferrovia, também representa o crescimento do PIB, que pode ou não ser acompanhado do desenvolvimento social.
Em 12 novembro de 2015, aqui no Valor (“As instituições
funcionam?), iniciei uma discussão acerca do funcionamento das instituições,
ali entendidas como o conjunto de restrições para estruturar as interações
sociais, políticas e econômicas. São as regras do jogo, como ensinava Douglas
North, Nobel da Economia. Na época, o ambiente político era desastroso. Os
debates giravam em torno da nova matriz econômica, das pedaladas, impeachment e
lava-jato. O cenário era de caos, com riscos generalizados e elevados.
Hoje, o quadro socioeconômico é dos mais
complexos e penosos, como em 2015, com os vagões fora do trilho. Passa de 60
milhões o número de pessoas abaixo da linha da pobreza, quase fora da 3ª
classe. Mal saímos de uma pandemia, com efeitos devastadores no emprego e na
renda, entramos numa grave crise econômica, motivada pela invasão da Rússia à
Ucrânia, que afetou o preço do petróleo e de seus derivados.
No entanto, governos de todo o mundo buscam
soluções para o Jogo da Velha, quando a partida é de Xadrez. Os ditos
estrategistas, de todos os quadrantes, concentrados em saída fáceis e
populistas, só veem um passo à frente. Para eles, mascarar a inflação, ao
reduzir temporariamente certos impostos, aliviaria a gravidade da crise. Pode
ser. Mas por quatro ou cinco meses, se tanto.
O problema é que o movimento das peças
(políticas e econômicas) exige a análise de benefícios e custos para várias
jogadas adiante, mas ninguém quer saber. As ações improvisadas que, no geral,
relaxam o rigor do controle das contas públicas, comprometem o crescimento do
PIB.
A sensação é de descontrole, como o trem a
descer um trecho de ferrovia com declive acentuado. Seus freios foram
abandonados. Muitos, os mais pobres, ficarão pelo caminho, sob vagões tombados.
O ambiente político, cercado de ódio,
destrói as pontes necessárias para o desenho de um novo contrato social e das
reformas, úteis para pôr o trem (a economia) novamente nos trilhos. A economia,
aliás, foi penhorada. O Congresso Nacional é seu agente de custódia. E um
terrível custodiante.
O processo de banalização das mudanças na
Constituição faz seu trabalho. Só em 2022 já são mais de dez propostas de
emendas constitucionais (PECs). Algumas com apelidos interessantes: “PEC
Kamikaze”, “do desespero”, “da bondade” e outras variantes. E é Kamikaze
porque, lá na frente, o cenário é de suicídio. Aprovadas quase por unanimidade,
sinalizam um feedback negativo. Ao prevalecer o vale-tudo, as instituições
sairão ainda mais enfraquecidas, com a consequente elevação do risco-país.
São iniciativas que não só burlam, como
“nocauteiam” a CF, rasgando-a. Carlos Sardenberg, no Globo de 9 de julho (Nem a
Constituição pegou) e Adriana Fernandes, no Estadão de 10 de julho (O caos com
a PEC Kamikaze é opção deliberada), mostram porque se chegou a estágio tão
deplorável.
Destaco alguns números ilustrativos: a
Constituição dos Estados Unidos (EUA) ainda é a de 1787. Nesses 235 anos, foram
vinte e sete alterações. Pouco mais de uma a cada dez anos. Parte delas para
abraçar as cláusulas de direitos humanos. É essa estabilidade uma das
explicações para que os EUA tenham instituições fortes.
No Brasil, estamos na 7ª constituição. A
primeira é de 1824. Quase uma nova CF por quarto de século. Cada geração é
brindada por uma constituição para chamar de sua. E o ritmo de mudanças não
deixa dúvida. Até novembro de 2015, a CF de 1988 já tinha sido objeto de 88
emendas. De lá para cá, chegamos a 112, e muitas estão em curso. No total, são
mais de três alterações por ano. A Constituição é mais vulnerável que
convenções de condomínios e estatutos de blocos carnavalesco, aqueles
conhecidos como “bloco de sujos”.
A Constituição foi sequestrada. Ela já não
tem um guardião, mas sequestradores e carcereiros. E tudo começou há 25 anos,
com a Emenda nº 16, a da reeleição, que desde então é o paradigma. Até na
forma: o cruzamento de interesses espúrios.
O cenário é desalentador. Há muito espaço
para piorar. A tendência é de exclusão social. Mais pretos e não brancos
ficarão fora dos vagões, até da 3ª classe. Sairá muito caro, e levará mais que
um par de anos, o resgate da CF e da economia, presas fáceis de uma estrutura
política incorrigível, que elevará o valor da remição.
Vem de um axioma de Ulysses Guimarães o
mais sólido argumento para a conclusão acima: “você só diz que esse Congresso é
ruim porque ainda não viu o próximo”. Com a economia penhorada, sujeita às
vontades do parlamento, sem ser um parlamentarismo, e a CF sequestrada, há,
sim, muito espaço para piorar. E é um desalento pensar que os destinos do PIB
serão conduzidos pelo Congresso que vem por aí.
*Edvaldo Santana é doutor em engenharia de produção e professor titular aposentado do departamento de economia da UFSC
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