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PEC Eleitoral reflete degradação
institucional
O Globo
O enfraquecimento da democracia promovido
pelo Congresso equivale a um 7 a 1 de Bolsonaro sobre o Brasil
A aprovação pela Câmara da Proposta de
Emenda à Constituição 15/2022, a PEC Eleitoral, demonstrou de que lado está a
maioria dos deputados. Assim como os senadores, eles não estão preocupados com
o futuro do Brasil, mas sim interessados em garantir seus atuais empregos nas
eleições de outubro, ainda que para isso tenham de enfraquecer as instituições
democráticas.
É difícil exagerar o que a PEC Eleitoral
representa em termos de deterioração dos mecanismos de controle institucional.
Ao liberar o governo federal para distribuir benefícios em ano de eleição, ela
subverte a regra que procura evitar o uso da máquina estatal em prol dos
políticos em busca de reeleição. Embora valha apenas para 2022, a PEC abre um
precedente inaceitável. É um passo na direção da degradação institucional que,
em países como Venezuela e Hungria, descambou em regimes autocráticos.
Os congressistas podem argumentar que
aumentar o Auxílio Brasil de R$ 400 para R$ 600 era uma necessidade, dizer que
caminhoneiros e taxistas estão sofrendo com os repetidos aumentos dos
combustíveis ou afirmar que famílias voltaram a cozinhar a lenha por não ter
dinheiro para pagar o gás. Mesmo que tudo isso possa ser até verdade, a
justificativa não passa de cortina de fumaça.
Se quisessem ajudar os mais pobres, poderiam ter agido dentro do período legal, adotando políticas dirigidas aos necessitados. Assim não contribuiriam para agravar a crise fiscal e para realimentar a inflação, que consumirá em pouco tempo boa parte das benesses concedidas. A PEC dá com uma mão o que ela mesma tira com a outra.
Faltaram ao governo e à sua base de apoio
no Parlamento visão e competência — todos esbanjaram açodamento e demagogia. E
não faltaram manobras heterodoxas do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL),
como a suspensão por 12 horas da sessão de terça-feira. Tudo para evitar uma
derrota e garantir o reforço de dinheiro para a campanha de Jair Bolsonaro e de
seus apoiadores no Congresso.
A oposição demonstrou uma apatia
vergonhosa. Não teve a coragem de denunciar o atropelo da Lei Eleitoral nem a
sagacidade para evitar a armadilha de “não poder” votar contra para não perder
votos. No embate moral, ficaram indistintas as posições do Centrão bolsonarista
e dos oposicionistas, com poucas exceções. Os dois lados perderam — mas a
grande vítima de tudo foi, sem dúvida, o Brasil.
As sequelas serão graves. Além de abalar o
equilíbrio na disputa pelo poder, a aprovação da PEC Eleitoral abre as portas
do Tesouro para impulsionar a campanha governista. O rombo passa dos R$ 41
bilhões. Até parece que o país tem dinheiro sobrando e que não há demandas mais
prioritárias do que doar recursos escassos da União a caminhoneiros ou
taxistas.
Insatisfeitos em causar apenas todo esse
estrago, os congressistas ainda tiveram a desfaçatez de, ao aprovar o estado de
emergência, conceder um salvo-conduto para Bolsonaro poder escapar de
incriminações futuras na Justiça. Sabe-se lá o que mais o presidente decidirá
fazer sob um estado de emergência. Na verdade, o que se viu nesta semana foi o
apito final de um 7 a 1. Bolsonaro e Congresso 7 x Brasil 1.
Operação da PF em sete estados é exemplo no
combate ao tráfico
O Globo
Ação para desarticular quadrilha que
exporta droga para a Europa mirou na fonte financeira do bando
A operação Maritimum, deflagrada ontem pela
Polícia Federal (PF) em sete estados das regiões Sudeste, Nordeste e Norte,
mostra que é possível combater o crime organizado com investigação,
inteligência, planejamento e cooperação — em vez de promover guerras sangrentas
altamente custosas, tanto em perda de vidas quanto em desperdício de tempo,
dinheiro e energia.
O objetivo da operação, que contou com o
apoio de polícias estaduais, era desarticular uma quadrilha que atua no tráfico
internacional de drogas usando portos brasileiros. Segundo as investigações,
iniciadas no fim do ano passado, o bando atua no transporte e armazenamento da
droga vinda de países produtores da América do Sul. Para tentar despistar, a
carga era escondida em contêineres de outras mercadorias e embarcada para
portos da Europa.
Ao longo da investigação, foram apreendidas
cerca de 8 toneladas de droga nos portos de Santos (SP), Salvador (BA), Natal
(RN), Fortaleza (CE) e Barcarena (PA). Foram interceptados também carregamentos
na Bélgica, na França e na Holanda. Um dos traficantes destinatários da droga
foi preso recentemente na Hungria. A polícia cumpriu ontem 46 mandados de
prisão e 90 de busca e apreensão nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Rio
Grande do Norte, Bahia, Pernambuco, Ceará e Pará.
De acordo com a PF, o dinheiro arrecadado
pela quadrilha era lavado por meio de pessoas físicas e empresas, “criando uma
rede estruturada de tráfico internacional de drogas por intermédio da
exportação de mercadorias”. A Justiça determinou o bloqueio de R$ 170 milhões
que pertencem aos investigados.
Operações desse tipo são essenciais. É
sabido que o Brasil está na rota do tráfico internacional. Drogas e armas
circulam pelas principais estradas do país, portos e aeroportos. Raramente são
interceptadas pelas autoridades. Chegam também às quadrilhas entrincheiradas
nas favelas dos grandes centros. Não é segredo ainda que as poderosas facções
criminosas de São Paulo e Rio de Janeiro atuam nesse comércio ilícito,
estendendo sua área de atuação para os países vizinhos, como o Paraguai.
Embora necessárias, as frequentes operações contra o tráfico nas favelas não costumam produzir resultados práticos. Não reduzem a violência e, por vezes, resultam na morte de inocentes atingidos por balas perdidas. Polícias estaduais gastam parcelas significativas do orçamento em investidas que equivalem a enxugar gelo. A operação da PF aponta um caminho mais eficaz, porque atua para desarticular a rede criminosa e secar sua fonte de financiamento. Ela demonstra que investigação, inteligência e tecnologia costumam ser mais eficientes na luta contra o crime que saraivadas de tiros e bombas.
A PEC da reeleição
Folha de S. Paulo
Congresso aprova gastos de R$ 41,2 bilhões
para tentar turbinar as chances de Jair Bolsonaro
O Congresso aprovou na noite de quarta (13)
mais um ataque descarado às leis de controle do gasto público, à moralidade da
disputa política e a princípios da administração. Comandada por Arthur Lira
(PP-AL), a Câmara atropelou regras regimentais e votou em segundo turno a
Proposta de Emenda à Constituição 15, a PEC "Kamikaze" ou "dos
Bilhões".
Na terça (12), o ministro da Economia,
Paulo Guedes, disse no Senado que se tratava de uma PEC
"virtuosa das bondades". A emenda eleva o valor do Auxílio
Brasil de R$ 400 para R$ 600 e prevê ajudas para caminhoneiros autônomos,
taxistas, consumidores pobres de gás, transporte público e agricultura
familiar. O gasto previsto é de ao menos R$ 41,2 bilhões. Os benefícios expiram
em dezembro.
Para tais despesas, não se aplicam as leis
de controle de gasto público, casuísmo em tese fundamentado em outro
cambalacho, um "estado de emergência" devido à crise
mundial de energia —a alta da inflação, que causa mais miséria,
está aí faz ano e meio.
Tal artimanha terá a virtude de
desmoralizar ainda mais as normas de limitação do endividamento federal,
descrédito que começou em fins do ano passado, com a alteração do teto de
gastos.
Ainda que se recrie um sistema crível de
controle de gasto e dívida, a credibilidade política de uma nova norma fiscal
será, ao menos de início, mais baixa, dada a facilidade oportunista com que se
altera mesmo a Constituição. Assim, haverá mais pressão sobre taxas de juros e
de câmbio, outro empecilho à retomada do crescimento.
A desmoralização vai além. Mais e mais se
normaliza o vale-tudo no mundo da política, tendência muito agravada pela razia
institucional promovida por Jair Bolsonaro, abraçada pelo Congresso. A
oposição, sem estratégia ou coragem para lidar com o estelionato eleitoral,
embarcou no trem para a terra do descalabro republicano.
Apesar de ter prazo de validade, a PEC cria
mais dificuldades para o próximo governo, que dificilmente cancelará os
benefícios assim que tomar posse, o que aumentará a lista de gastos extras
agendados para 2023.
Mais do que isso, amplia um programa social
de má qualidade: o Auxílio Brasil distribui valores iguais para famílias de
tamanhos e condições diferentes, sendo, pois, injusto, entre outros problemas.
A única virtude da PEC foi a de evitar a
criação de mais e iníquos subsídios
para combustíveis. Até o governo percebeu que era do seu interesse
eleitoral aprovar uma PEC menos inepta e injusta. O remendo, contudo, não salva
o soneto, mais uma grande obra da arquitetura da destruição bolsonarista da
República.
Descrença na segurança
Folha de S. Paulo
Nos estados mais populosos do país, maioria
teme a polícia e apoia o uso de câmera pelos agentes
Pesquisas recentes do
Datafolha revelam o que a população dos estados de São Paulo,
Minas Gerais e Rio de Janeiro pensa sobre a segurança pública e a atuação da
polícia: ela teme o crime, mas também aqueles que deveriam protegê-la.
De um lado, o levantamento mostra que os
moradores estão com medo, mas por razões diferentes. Em São Paulo, temem mais
os crimes contra o patrimônio (87% da população); no Rio e em Minas, prevalece
o pavor de ser atingido ou ter parentes vítimas de bala perdida (91% e 83%,
respectivamente).
O alto índice de sensação de insegurança,
comum nos três estados, revela o quanto está espalhado na sociedade o medo de
ser vítima de crimes. Em si, isto já é uma falha da política de segurança
pública. É plausível supor, no entanto, que a percepção de insegurança, por ser
multifatorial, não necessariamente corresponda de forma precisa à realidade em
determinada região.
O fato de o medo de bala perdida ser
elevado em Minas, apesar de esse tipo de ocorrência ser menos comum do que no
Rio, ou o medo de ser assassinado em São Paulo, a despeito das quedas dos
índices de homicídio no estado na última década, revelam o descompasso entre
sensação e realidade.
Mas não é só o crime que causa apreensão. A
maioria nos três estados tem medo de ser vítima de violência praticada pela
Polícia Militar (74% no Rio, 68% em São Paulo e 64% em Minas). Entre os
paulistas, quem mais teme a polícia são os pretos (77%) e aqueles que ganham
até dois salários mínimos (73%) —grupos que costumam ser alvos da letalidade
dos agentes.
Para funcionar, a polícia precisa da
confiança da população. Mas os altos índices de mortes por agentes e a baixa
elucidação de crimes formam um quadro desalentador.
Há soluções possíveis, contudo. Mais de 90%
da população dos três estados é a favor das câmeras nos uniformes policiais e,
apesar de a experiência internacional revelar que não se trata de uma panaceia,
resultados como a redução expressiva da letalidade policial em SP após a
implantação destes dispositivos apontam caminhos.
Mesmo que às vezes a sensação de
insegurança esteja em descompasso com a realidade, a própria amplitude deste
temor não deve ser desprezada. Pois corre-se o risco de o medo ser capitaneado
por um populismo punitivo, quando a própria população já aponta querer o
caminho de melhores políticas de segurança —e não mais medo.
A conta da demagogia será salgada
O Estado de S. Paulo
Com renúncias fiscais sem critério e gastança generalizada, governo Bolsonaro deixará como herança para o próximo presidente um inevitável aumento da carga tributária
O preço de uma Proposta de Emenda à Constituição
(PEC) que rasga regras fiscais, eleitorais e constitucionais já começou a ser
embutido pelo mercado financeiro na curva futura de juros e na cotação do
dólar. Há, no entanto, uma conta que precisará ser paga pela sociedade em 2023
e que muito provavelmente demandará medidas duras por parte de uma equipe
econômica que tenha o mínimo de responsabilidade, algo ausente na atual
administração. Por meio da PEC Camicase, o governo quer ampliar o universo de
contemplados no criticado Auxílio Brasil de 18 milhões para 20 milhões de
famílias, segundo reportagem do Estadão. Essa inclusão, somada ao reajuste
do piso do benefício de R$ 400 para R$ 600, deve fazer com que o custo do
programa suba para até R$ 150 bilhões em 2023, ante quase R$ 90 bilhões neste
ano. Ainda que o aumento do benefício seja válido até 31 de dezembro, é
improvável que o futuro presidente da República, seja quem for o escolhido,
esteja disposto a anunciar um corte nos pagamentos ainda nos primeiros dias de
seu mandato.
Encontrar novas fontes de custeio para esta
e outras despesas da União será uma das primeiras e mais urgentes tarefas do
governo. Algo que já seria desafiador em qualquer situação se torna cada dia
mais necessário, considerando a disposição da atual gestão de abrir mão de receitas
– como se o País estivesse registrando um superávit nominal capaz de reduzir a
dívida pública, e não um déficit que deve atingir 6,7% do PIB neste ano,
segundo o mais recente boletim Focus. Somente o terraplanismo econômico e
o desespero eleitoral explicam o fato de que o Executivo, depois de reduzir o
Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) sem qualquer efeito nos preços
das mercadorias e de zerar os tributos sobre diesel e gás de cozinha, ainda
acredite haver espaço fiscal para lançar um pacote de incentivos para a
indústria neste momento.
Como revelou o Estadão, está em
análise a publicação de um decreto que reduz, de 20 para 1 ano, o prazo de
depreciação na compra de máquinas e equipamentos pela indústria. Sabe-se que
não é o tempo de depreciação que contém o ímpeto de investimentos da indústria,
mas uma combinação de baixa produtividade, juros elevados e crescimento
econômico pífio, razão pela qual é seguro inferir que o objetivo da medida é
outro: uma tentativa de comprar o apoio político de parte da indústria
nacional. Em termos práticos, no entanto, será mais uma renúncia fiscal
bilionária em um país dono de um Orçamento engessado por despesas obrigatórias
e saqueado por emendas de relator, e que, a despeito de toda a gastança
promovida pelo governo com o apoio da oposição e da dita “terceira via”, é
incapaz de garantir um prato de comida por dia para 15,4 milhões de pessoas.
Eis a herança maldita de Jair Bolsonaro
para seu sucessor. Se os três anos de governo foram ruins, não há outro termo
para definir a versão turbinada do presidente, agora em modo reeleição. A
combinação de renúncias e gastos irresponsáveis à revelia do teto de gastos,
aliada a uma inflação elevada e que promete causar um estrago na arrecadação de
2023, deixará um cenário deteriorado em termos fiscais, tributários e sociais
para a União. Ainda nem entraram nessa conta as consequências nefastas da
chantagem sobre os Estados, punidos pela imposição de um teto no Imposto sobre
Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) de bens essenciais, principal fonte
de receitas. A chance de que mais governadores precisem recorrer ao socorro
federal para pagar suas contas não é nada desprezível – e quem garante esses
financiamentos é justamente o Tesouro Nacional. Não é por acaso que o mercado
reduziu as projeções para o crescimento da economia para 0,50% em 2023, e já há
até quem preveja uma recessão. É nesse cenário tenebroso que o novo governo
terá que formar consensos políticos e encarar discussões adiadas há 30 anos,
como uma reforma tributária que, tudo indica, exigirá mais do que uma desejável
simplificação, mas também um impopular e inevitável aumento da carga de
impostos.
Povo perde, Tesouro ganha com inflação
O Estado de S. Paulo
Sem corrigir a tabela do IR para compensar inflação, governo arranca mais dinheiro de quem ganha menos, justamente os que são mais prejudicados pela alta do custo de vida
Mais que qualquer especulador, o governo
continua ganhando com a inflação, enquanto o trabalhador pobre é duplamente
prejudicado pelo aumento do custo de vida. No dia a dia, o consumidor de baixa
renda vê seu ganho mensal, já muito baixo, ser corroído pela alta de preços dos
bens e serviços indispensáveis à sua sobrevivência e ao sustento de sua
família. Mas como comprador ele ainda tem algum espaço de manobra. Pode
pechinchar na feira e buscar, lá mesmo ou nos vários pontos de comércio, os
preços mais suportáveis. Com o Tesouro o jogo é muito mais duro. Não dá para
regatear nem para evitar o impacto inflacionário quando o governo deixa de
corrigir a tabela do Imposto de Renda (IR). No próximo ano, esse tributo
incidirá sobre quem receber 1,5 salário mínimo por mês, se a tabela continuar
desatualizada, como tem estado há muito tempo.
O salário básico chegará a R$ 1.294 em
2023, segundo previsão incluída na recém-aprovada Lei de Diretrizes
Orçamentárias (LDO). Como o limite de isenção do IR está congelado em R$ 1.903,
valor fixado em 2015, quem ganhar R$ 1.941 terá seu rendimento sujeito ao
tributo direto. Mas o desajuste da tabela começou antes de 2015. O teto de
isenção seria R$ 4.465,34, se o governo tivesse atualizado o limite
corretamente para compensar a inflação acumulada a partir de 1996. O cálculo,
citado em reportagem do Estadão, é da Associação Nacional dos Auditores da
Receita Federal (Unafisco).
Ao congelar o limite, o governo realiza o
aparente milagre de converter pobreza em riqueza e com isso engorda sua
receita. Neste ano, cerca de 32 milhões de contribuintes deveriam ter
apresentado declarações de renda, segundo estimativa da Unafisco, mas o número
efetivo ficou em torno de 36 milhões. Os mais distraídos poderiam ver nisso um
sinal de prosperidade, embora tanto se fale em estagnação econômica e em
desemprego. Mas a história é bem mais feia do que pode parecer.
A recuperação, em 2021, foi pouco mais que
suficiente para reverter a queda ocorrida em 2020, e as condições de trabalho
continuaram muito ruins. Se houve mais contribuintes, foi porque os ganhos
nominais aumentaram e o limite de isenção foi mantido. E o aumento nominal dos
ganhos – detalhe importante – foi insuficiente, em muitos casos, para compensar
a corrosão inflacionária. Mas a tributação atingiu mais pessoas, agravando suas
perdas, e o Tesouro de novo ganhou com a inflação.
Ao manter desatualizado o limite de isenção
do IR, o poder central agrava os defeitos de um sistema já muito injusto. A
receita fiscal depende excessivamente, no Brasil, dos tributos indiretos. Isso
é bem visível no caso dos governos subnacionais. O tributo estadual mais
importante é o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS),
incidente na maior parte das despesas familiares. Parte dessa receita é passada
aos municípios. Na área federal, o IR proporciona cerca de metade da
arrecadação tributária, mas pode-se discutir se as suas alíquotas são
suficientemente progressivas.
A inflação tem aumentado a arrecadação do
IR e também a dos tributos indiretos, como o Imposto sobre Produtos
Industrializados (IPI). As finanças federais vêm sendo favorecidas, claramente,
pela alta de preços e, portanto, pela erosão dos ganhos da maior parte da
população. O encarecimento de bens e serviços essenciais, aqueles de maior peso
no orçamento familiar e na composição dos índices de preços, contribui para o
reforço das contas públicas, tornando menos necessários, do ponto de vista
contábil, o controle dos gastos e a arrecadação mais eficiente.
As injustiças tributárias seriam
parcialmente compensadas se as políticas públicas propiciassem crescimento,
emprego e boas perspectivas sociais. Mas o poder federal tem produzido, no
mandato do presidente Jair Bolsonaro, estagnação, inflação, desemprego e
devastação da educação e da saúde, num ambiente propício a aberrações como o
orçamento secreto. Nesse ambiente, é mais seguro adiar iniciativas de reforma
tributária, para evitar desastres maiores.
O mau exemplo vem de cima
O Estado de S. Paulo
Se o próprio presidente desrespeita a Constituição, militares que recebem acima do teto não têm com o que se preocupar
No governo do presidente Jair Bolsonaro, os
militares ganharam projeção inaudita desde a redemocratização do País. Nas mais
diferentes áreas da administração pública federal, da Saúde ao Meio Ambiente,
da Educação à Ciência e Tecnologia, da Cultura à Justiça e Segurança Pública,
constata-se a presença de mais militares ocupando cargos e exercendo funções
civis do que já houve em todos os governos eleitos a partir de 1989. De acordo
com um levantamento recente do Tribunal de Contas da União (TCU), hoje há 6.157
militares, da ativa e da reserva, atuando no governo federal.
Há muitos reparos que devem ser feitos à
entrega de cargos e funções essencialmente civis a membros das Forças Armadas,
cuja proximidade institucional com a Presidência da República Bolsonaro
instrumentaliza por interesses particulares. Mas há previsão legal para essas
designações. O problema é que todo esse prestígio que as Três Armas, sobretudo
o Exército, obtiveram no atual governo tem servido de subterfúgio para que
alguns militares engordem seus holerites em desabrida afronta às leis, à
Constituição e ao próprio “espírito militar”. Militares de corpo e alma são
bastante ciosos da obediência aos comandos da Constituição.
O Estadão teve acesso ao
relatório de uma auditoria da Controladoria-Geral da União (CGU) que
identificou uma série de casos de acúmulo de funções militares e civis sem
qualquer tipo de amparo legal. Em muitos casos (729), a soma das remunerações
desses militares ultrapassa o teto constitucional de R$ 39.293,22 por mês, equivalente
ao salário pago aos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). Se todos esses
pagamentos ilegais fossem restituídos, R$ 5,14 milhões teriam de voltar aos
cofres públicos.
A CGU constatou que, daquele total de
militares que atuam no governo federal, 2.327 (incluindo seus pensionistas)
estão em “situação irregular”. Destes, 558 ocupam ilegalmente cargos militares
da ativa e cargos civis, ou seja, estão exercendo funções estritamente vedadas
aos fardados. A CGU apurou ainda que 930 militares se enquadram nos casos
legais de acúmulo de funções, mas extrapolaram o prazo-limite. Por lei,
militares da ativa podem ser designados para cargos de natureza civil, mas pelo
prazo máximo de dois anos.
De acordo com a CGU, o problema pode ter
como causa “a eventual má-fé dos militares ao permanecerem como requisitados
para atividades civis federais por tempo prolongado, nos casos em que estejam
cientes da irregularidade”. A Constituição é claríssima: o vínculo civil de
militares é autorizado por período máximo de dois anos, devendo o militar ser
transferido para a reserva caso a situação do vínculo temporário persista.
Alguns militares, no entanto, podem se
sentir autorizados a descumprir as leis e a Constituição porque, no topo da
hierarquia, há um comandante em chefe das Forças Armadas que é useiro e vezeiro
em afrontar o ordenamento jurídico do País. Até um dos mais notáveis traços da
natureza militar – a força do exemplo – Bolsonaro parece empenhado em
dilapidar.
Processar ou não Trump será uma decisão
vital nos EUA
Valor Econômico
Se conseguirem reforçar a sua democracia,
os EUA darão um exemplo ao mundo
Em algumas semanas o Congresso e o governo
dos EUA terão de tomar uma decisão muito importante e difícil: se irão ou não
denunciar criminalmente o ex-presidente Donald Trump. Essa decisão deverá ter
um amplo impacto na vida social e política do país. E poderá reverberar no
exterior, até no Brasil, pois trata de processar um ex-líder que tentou se
manter no cargo por meios ilícitos.
A atuação de Trump nos eventos que levaram
à invasão, por manifestantes, do Congresso dos EUA, em 6 de janeiro de 2021,
vem sendo investigada há um ano por uma comissão de inquérito da Câmara dos
Deputados. A comissão está na fase final de tomada de depoimentos. Em agosto
deverá publicar um relatório preliminar com suas conclusões. O relatório
completo sairá em setembro.
A comissão é formada por sete democratas
(partido com maioria na Câmara) e dois republicanos. O Partido Republicano se
opôs à investigação e repreendeu os deputados que aceitaram participar da
comissão: Liz Cheney e Adam Kinzinger, opositores de Trump.
As investigações apontam que Trump, logo
após as eleições de 3 de novembro de 2020, iniciou uma campanha para tentar
reverter sua derrota para Joe Biden. Segundo a apuração, Trump foi informado
por assessores de que fora legitimamente derrotado nas urnas, mas ainda começou
a espalhar notícias falsas sobre fraude eleitoral que teria impedido a sua
vitória. Em seguida, ele trocou o secretário de Justiça, que não queria
cooperar com a campanha. Passou então a pressionar autoridades de sete Estados
governados por republicanos para que alterassem os resultados eleitorais. Pressionou
também o vice-presidente, Mike Pence, para não certificar a vitória de Biden na
sessão do Congresso em 6 de janeiro, Diante da recusa de Pence, Trump mobilizou
apoiadores para a manifestação em frente ao Congresso e incitou a violência,
como forma de pressionar Pence a subverter a eleição.
Quase todas as evidências na investigação
foram proporcionadas por pessoas que atuavam em governos estaduais republicanos
ou no governo federal, até na Casa Branca.
Segundo já adiantaram membros da comissão,
o relatório provavelmente pedirá uma denúncia formal contra o ex-presidente,
que deverá ser acusado de vários crimes, como obstrução de uma sessão oficial
do Congresso, conspiração contra os EUA, insurreição (a acusação mais grave),
fraude na captação de recursos, obstrução de Justiça. A pena poderia superar 20
anos de prisão. Se a denúncia for aceita pelo Judiciário, Trump se tornará réu.
Até hoje, nenhum ex-presidente americano foi processado por crimes cometidos no
mandato.
O ex-presidente continua repetindo que só
perdeu a eleição por causa de fraude e diz que não convocou a manifestação de 6
de janeiro e nem estimulou a sua conclusão violenta.
A apuração da comissão sugere que Trump
tentou dar um golpe, que foi frustrado porque as instituições do país
funcionaram. Se isso for provado, é vital para a democracia americana que Trump
seja responsabilizado.
O Partido Republicano sinaliza que deve
votar, na Câmara, contra um pedido de indiciamento. O partido livrou Trump de
dois processos de impeachment, absolvendo-o no Senado. É possível que essa
complacência tenha estimulado o ex-presidente a fazer o que fez. O partido, no
entanto, parece estar ainda capturado pelo ex-presidente.
Mas o relatório deverá ainda assim ser
aprovado, pois os democratas têm maioria na Câmara. A batata quente passará
então para o Departamento de Justiça, que terá de decidir se apresenta ou não a
denúncia contra Trump.
Isso tudo deverá ocorrer em meio à campanha
para as eleições legislativas de novembro (na qual os democratas correm o risco
de perder uma ou até as duas casas do Congresso) e num ambiente econômico
conturbado, com ameaça de recessão e inflação no maior nível em mais de 40
anos.
A aprovação de Biden está abaixo da que
Trump tinha após a invasão do Congresso. O ex-presidente vai denunciar
perseguição política, o que pode mobilizar seu eleitorado em novembro. E uma
denúncia mal feita ou uma nova absolvição pode impulsionar a sua eventual
candidatura à Presidência em 2024. Trump ficaria novamente em evidência.
Deixar, porém, uma tentativa de golpe sem punição poderá estimular novos ataques à democracia. E poderá desestimular aquelas pessoas e instituições que a defenderam em 2021. Como mostra a história, a democracia acaba quando faltam pessoas dispostas a defendê-la. Se conseguirem reforçar a sua democracia, os EUA darão um exemplo ao mundo. Senão, vão favorecer líderes dispostos a qualquer coisa para continuar no poder.
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