Devemos
aproveitar esta nossa reflexão sobre a comunidade do Acupe de Santo Amaro e a
manifestação dos Negos Fujidos para entender melhor como a sociedade brasileira
foi e continua sendo construída e os desafios de preservação da nossa memória
histórica e cultural.
Assim, saber mais dos Negos Fujidos é saber como se desenvolveu e se consolidou a escravidão brasileira, o processo de libertação da escravatura até a atualidade, na perspectiva de superarmos a difícil realidade que vive, ainda hoje, a população negra da Bahia e do Brasil.
Os
Negos Fujidos
O
Acupe de Santo Amaro, umbigo do recôncavo da Bahia, na sua particular
resistência e luta pela libertação dos escravos, traz na sua história, e por
tudo o que eu vi e assisti na celebração aos negos fujidos, uma contribuição
afetiva e efetiva na perspectiva de inclusão da população negra como parte
integrante da sociedade brasileira.
É
de espantar o que presenciei nas ruas do Acupe: o Nego Fujido é uma grande
encenação teatral. É festa, é resistência, é celebração da vida, inspirada nas lutas
contra a escravidão, afirmando e reafirmando a contribuição da cultura negra à
sociedade baiana e brasileira.
As
ruas do Acupe são palcos de uma grandiosa encenação onde os principais
personagens são o Rei, o Capitão do Mato, os Escravos e a Madrinha.
O
Nego Fujido é o poder de resistência e de organização da comunidade, das
antigas e novas gerações do Acupe que deram e continuam dando provas de como é
possível preservar e continuar fazendo história, de maneira festiva e pedagógica,
afirmando e reafirmando os valores culturais ancestrais que enriquecem a
cultura baiana e brasileira.
Ficamos
impactados, sempre é bom lembrar, com o descompromisso, a falta de apoio da
elite política governamental e empresarial da região, nos níveis municipal,
estadual e federal, com tão importante manifestação cultural e cívica, secular,
de matriz africana, parte integrante da nossa memória libertária, que tem, no
recôncavo e na capital da Bahia, os fundamentos da nossa brasilidade e
existência como nação.
Tudo foi e é feito neste mês de julho em Santo Amaro, apenas com a participação da Comunidade e de alguns abnegados, inclusive a sede, orgulhosamente inaugurada, recentemente, do Nego Fujido – que já funciona como centro cultural e educacional, construída e funcionando sem nenhum apoio do poder público.
As
lutas de libertação: os atores políticos, econômicos e sociais
A
cultura do racismo nasce como uma maneira de exclusão dos povos africanos da
vida e das conquistas da sociedade humana durante o século XV, deixando marcas
profundas até à atualidade. Desde então, a escravidão passa a ser diretamente
relacionada aos povos africanos, como uma maldição, a partir de uma visão
cultural e religiosa eurocêntrica nas colônias da América, na Europa e no
próprio continente africano. O Brasil foi o país de maior concentração de
escravos africanos do mundo. Chegou a uma população de 5 milhões de escravos ao
longo de mais de 300 anos em que perdurou a escravidão negra no Brasil.
A
escravidão africana, até meados do século XIX, era um dos principais esteios da
vida econômica na América e na Europa. Fazia parte da estrutura das relações
políticas, econômicas e sociais; base de acumulação de riqueza dos países europeus,
inclusive da Inglaterra, berço da revolução industrial.
A
existência anterior da escravidão na história da humanidade, inclusive a
escravidão de brancos e de indígenas, não traz relatos de sofrimentos e de
perdas tão significativas e duradouras como a escravização dos povos africanos,
realidade que nos agride como humanidade até os tempos atuais.
No
Brasil, o abolicionismo consolidou-se como uma das formas mais representativas
dos movimentos políticos do século XIX cujo objetivo era o fim do comércio de
escravos africanos e a abolição da escravatura.
As
leis abolicionistas promoveram a emancipação dos escravos de maneira gradual. A
primeira foi a Lei Eusébio de Queiroz, em 1850. Posteriormente, a Lei do Ventre
Livre, em 1871, e a Lei dos Sexagenários, em 1885. Finalmente, a lei assinada
pela Princesa Isabel, em 13 de maio de 1888, que abolia a escravidão no Brasil.
As principais lideranças negras abolicionistas foram André Rebouças, José do
Patrocínio e Luiz Gama. Ainda devem ser destacadas as lideranças femininas de
Maria Tomásia, Adelina e Maria Firmina dos Reis, entre outras lideranças
abolicionistas brasileiras.
Em
uma outra perspectiva acontece, desde o início da escravidão no Brasil, a luta
dos quilombolas. Os quilombos eram organizados como espaços de resistência, de
libertação. O de Palmares é o mais conhecido e aclamado com a liderança de
Zumbi, cuja data de sua morte, 20 de novembro, passou a ser o dia nacional de
resistência e de luta pelos direitos da população negra no Brasil, desde 2011.
A
abolição da escravatura no Brasil em 13 de maio de 1888, assinada pela princesa
Isabel, foi fruto de todas essas lutas, das mudanças que já vinham acontecendo
na sociedade brasileira, pressionada pelas transformações políticas, econômicas
e sociais que já aconteciam na Europa, na própria América, a exemplo do
movimento de libertação dos escravos no Haiti que foi fundamental na
proclamação da República naquele pais. Essa abolição atendia também aos
interesses da Inglaterra, em plena industrialização, que necessitava de mercado
e matéria prima fora da Europa para consolidar a sua hegemonia no cenário
internacional.
Nesse
contexto, a abolição da escravatura no Brasil atendeu aos interesses das
oligarquias nacionais que já não podiam manter o custo da mão de obra escrava
e, ainda em função da realidade internacional, onde o Brasil já representava,
em função de suas riquezas naturais, particularmente minerais,
produção/potencialidades agrícola e pecuária, um espaço de acumulação e de
mercado da economia capitalista mundial.
Portanto, a libertação da população negra foi resultado das lutas de resistência dos movimentos de libertação desde quando os escravos(as) chegaram ao Brasil, dos movimentos Quilombolas e dos Abolicionistas, de resistências e de conquistas no processo de emancipação da população negra como parte integrante das lutas de transformação da sociedade brasileira, com seus conflitos e contradições históricos e atuais.
Os Negos continuam Fujidos
No
Brasil atual, os Negos continuam fugidos. Os desafios históricos de inclusão da
população negra na sociedade brasileira continuam atuais.
A
abolição da escravatura no século XIX não incorporou a população negra à nova
realidade política, econômica e social capitalista. Sem a terra e a
escolaridade necessárias, os(as) negros(as) libertos(as) continuam fujidos na
sua maioria, ficando à margem da sociedade brasileira, apesar das conquistas e
dos avanços da população negra no Brasil, consolidadas na Constituição de 1988
e os seus desdobramentos político-institucionais, em função da luta e da
resistência da população negra e do avanço da democracia brasileira.
Atualmente
quais são os compromissos dos que governam, da sociedade e da cidadania em
geral frente a esta realidade da população negra brasileira?
O
que pensam hoje o Movimento Negro e os outros movimentos políticos, econômicos,
sociais, ambientais e multiculturais frente às mudanças em curso na sociedade
brasileira e mundial, onde a educação, a ciência, a tecnologia, a luta pela paz
e seus reflexos no mundo do trabalho e da cultura impactam a vida de cada um de
nós e de toda a sociedade?
No
Brasil, ainda em pandemia, particularmente os(as) trabalhadores(as) de menor
renda e a população desempregada em geral, na sua maioria negra, continuam enfrentando sérias
dificuldades econômicas e sociais, entre as quais a falta de uma renda emergencial
permanente que lhes assegurem o mínimo de dignidade para atravessar a crise
agravada com a contaminação e a morte de milhões de pessoas pela Covid-19, dão a dimensão da tragédia que atinge principalmente a população de
baixa renda, as mulheres na sua dupla jornada de trabalho, as populações
indígena e negra historicamente excluídas
no Brasil.
A
inclusão da população negra, 54% da população brasileira segundo o IBGE, deve
ser realizada a partir de pautas afirmativas e de reparação com o olhar do
presente no caminho de um futuro que unifique a sociedade construindo uma
agenda nacional para a saída da crise no caminho da consolidação e ampliação da
democracia em nosso país. A população negra e suas representações no Brasil
devem estar em diálogo permanente com a opinião pública e a sociedade em geral
fortalecendo suas redes sociais e de comunicação, defendendo a melhoria das
condições de vida da população negra, ampliando sua participação nas
organizações do Estado, do Mercado e da Sociedade Civil, apostando em uma
agenda nacional reformista que retire o Brasil dessa grave crise política, econômica,
social, ambiental e de valores que estamos vivendo.
Nesta
perspectiva, a população negra e a sociedade brasileira em geral continuam
pautadas a construir uma agenda propositiva a ser pactuada no enfrentamento dos
reais problemas nacionais agravados com a pandemia: realizar as reformas no
caminho de uma nova economia, pensando o Brasil nos próximos 5, 10, 15 e 20
anos, considerando a sua dimensão continental, as potencialidades nacionais e
regionais, seus ativos naturais e a diversidade étnica e cultural. A base dessa
construção democrática é a educação, a ciência e a tecnologia que devem ser
incorporadas como estruturantes e estratégicas melhorando a qualidade de vida
dos que trabalham, da população negra e de toda a sociedade.
Assim,
a população negra e a sociedade brasileira podem e devem se encontrar, deixando
de serem fugidas, reafirmando as nossas humanidades ancestrais, superando os
conflitos e as contradições historicamente construídos, de uma maneira
inclusiva na sua organização política, econômica e social, com uma melhor
distribuição da riqueza produzida por toda a sociedade.
Estamos desafiados(as).
*UFBA, Professor, doutor, da Oficina da Cátedra da UNESCO-Sustentabilidade e do Conselho do Instituto Politécnico da Bahia
2 comentários:
Muito bom, George. Da resistência à ação transformadora de uma realidade que permanece opressiva. O grito do Recôncavo Baiano para o Brasil e para o mundo - um outro modo de produção e consumo, de ser e estar na Terra, com a terra e em cada território é possível e necessário.
Gracias George, que interesante. Me ayuda a refrescar mi portugués.
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